Artigos de Braulio Tavares em sua coluna diária no "Jornal da Paraíba" (Campina Grande-PB), desde o 0001 (23 de março de 2003) até o 4098 (10 de abril de 2016). Do 4099 em diante, os textos estão sendo publicados apenas neste blog, devido ao fim da publicação do jornal impresso.
sexta-feira, 16 de julho de 2010
2273) Drummond: “Alguma Poesia” (20.6.2010)
Alguma Poesia foi o primeiro livro de poemas de Carlos Drummond de Andrade. Publicado em 1930, seus 80 anos estão sendo comemorados com recitais e uma edição especial organizada pelo poeta Eucanaã Ferraz. É um livro fundador, indispensável para entender a poética pessoal de Drummond (já está praticamente tudo ali, germinando, no livrinho do rapaz de 28 anos) e o modo como o Modernismo abalroou a poesia de então. E, por extensão, para entender a poesia que se faz hoje no Brasil. Alguma Poesia é uma leitura obrigatória e uma influência indelével nos jovens aspirantes a poeta dos últimos 40, 50, 60 anos.
Basta vermos o “Poema de Sete Faces” que o abre. “Anjo torto”, “gauche”, “uma rima e uma solução”... tudo isto saiu do livro para entrar no idioma. Precisava um bocado de coragem para chamar isso de poema, não porque não o seja, mas porque seu arranjo formal, sua dicção e seu olho enviesado sobre o mundo não são o que se esperava dos poetas de 1930. Pra começo de conversa, o poema não parece ter sequência, coerência, nem progressão. São sete fragmentos colados. Recordo a primeira impressão que tive quando o li há mais de quarenta anos: “sete retalhos de cores diferentes costurados uns nos outros”. Como se fossem sete tentativas de começar um poema, que não conseguissem avançar, mas fossem preservadas, por terem algum mérito próprio.
Os fragmentos se alternam entre confissões emotivas na primeira pessoa e flashes captados com certo distanciamento, certa neutralidade afetiva. As estrofes 2, 3 e 4 são como ceninhas de um videoclip urbano em que se confundem casas, homens, mulheres, bondes, pernas, bigodes, óculos. São o mundo de fora do poeta, o mundo que ele vê passar e que avalia com certo distanciamento brechtiano. É preciso um esforço de imaginação para pensarmos que o “homem atrás dos óculos e do bigode” poderia ser, talvez seja, o próprio poeta, vendo-se com olhos alheios, vendo a si próprio como rosto e mistério mudo.
Mistério que não existe na estrofe 1, sua auto-ironia, sua impudência juvenil de ousar ser do contra; na estrofe 4 e seu surpreendente lamento de auto-comiseração, que soaria até patético se não estivesse contrabalançado ou diluído pelas demais estrofes; pela melancolia e altivez solitária da famosíssima penúltima estrofe; pelo exemplar estranhamento da estrofe final, na qual tanto podemos interpretar a voz do poeta dirigindo-se a um amigo ou ao próprio leitor, quanto a voz de alguém dirigindo-se ao poeta.
Fernando Pessoa disse, celebremente, que toda poesia lírica é poesia dramática, todo sentimento é inventado, toda vez que o poeta diz “eu” está falando de outra pessoa, até quando julga sinceramente estar falando de si mesmo. Drummond, contemporâneo (à distância) de Pessoa, abriu seu livro de estréia com estes fragmentos que parecem pertencer a sete heterônimos. E o resto da vida tentou (ao inverso do poeta português) reunir todos sob um só nome e um só rosto.
Professor, acho que faltou seu comentário de algumas poesias de "Alguma Poesia". Aos 40 anos é a primeira vez que me debruço em Drummond e gostei de suas observações.
ResponderExcluirOlá, Soldado. De fato, ficaram faltando vários poemas... Na época pouca gente acessava esses comentários, e eu perdi um pouco a motivação. Quem sabe eu volto agora a retomar a série, já que tem algumas pessoas lendo. Obrigado pelo toque!
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