Artigos de Braulio Tavares em sua coluna diária no "Jornal da Paraíba" (Campina Grande-PB), desde o 0001 (23 de março de 2003) até o 4098 (10 de abril de 2016). Do 4099 em diante, os textos estão sendo publicados apenas neste blog, devido ao fim da publicação do jornal impresso.
sábado, 10 de julho de 2010
2253) A forma e o espírito (28.5.2010)
(www.imagesavant.com)
Me perguntam se é possível, para quem não é nordestino, escrever literatura de cordel, e o que era necessário para isso. Respondi que eram necessárias apenas duas coisas: domínio da forma e compreensão do espírito. Dominar a forma do cordel não é apenas conhecer as estrofes básicas e saber recitar sua descrição: “Uma sextilha tem seis linhas, cada uma com 7 sílabas, e a segunda, a quarta e a sexta rimam entre si”. É saber derramar o texto nessa fôrma como quem derrama água num copo, sem sobrar nem faltar uma gota. O que é compreender o espírito? É ter lido uma variedade e quantidade suficiente para ter o discurso do cordel como uma segunda natureza, sentir-se livre o bastante para criar o que lhe der na telha e saber que tudo que criar não irá produzir um curto-circuito de estranheza.
O que é necessário (digamos) para escrever um bom romance policial? A mesma coisa: domínio da forma e compreensão do espírito. Dominar a forma não é imitar o estilo de A,. B ou C, até porque o gênero tem um alfabeto inteiro de idiomas. É saber que existe uma mecânica básica (ou um conjunto de mecânicas) que postas em ação dão a um romance o direito de pertencer ao gênero. E o que é compreender seu espírito? É entender que esse gênero não cresceu por acaso nem por injunções do mercado, mas devido a uma troca permanente de estímulos entre os contadores dessas histórias e as pessoas que procuram nelas, sempre, as mesmas coisas e coisas diferentes.
O que é preciso para fazer um samba? Domínio da forma e compreensão do espírito. A forma envolve um feixe de raízes melódicas e rítmicas essenciais; podem ser primitivas, mas se o compositor é sofisticado demais, dodecafônico ou estocástico demais, não conseguirá dominá-las, pois o que domina já é tão rarefeito que as exclui. E compreender o espírito do samba é ter consciência das inúmeras camadas superpostas de samba que, a esta altura, constituem a história do gênero. Quem é sambista sabe que existem canções extremamente inteligentes e talentosas que são chamadas de sambas mas que não o são, e sambas medíocres que conseguem sê-lo.
Filme de ficção científica? Mesma coisa. Fazer um filme de FC não é contar uma história que envolva espaçonaves, alienígenas e efeitos especiais. O que basta é apenas isto: domínio da forma e compreensão do espírito. O filme de FC tem um repertório de situações, de pontos de partida dramatúrgicos e de tensões internas que vai muito além dos clichês que ele próprio acabou produzindo. São poucos os gêneros em que chega a tal ponto a interdependência entre domínio da forma e compreensão do espírito. Porque é preciso ter lido muita FC (e visto muitos filmes de FC) mas saber seu objeto não é a espaçonave mas a Viagem, não é o alienígena mas o Estranho, não é o robô mas o Duplo, não é o computador mas a Máquina, não é o monstro mas o Inconsciente, não é o mutante mas a ruptura de conceitos e a transcendência rumo a uma realidade mais complexa.
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