sábado, 10 de julho de 2010

2252) A Maldição do Estorninho (27.5.2010)



(foto: Fernando Gonçalves)

Os artistas plásticos não inventaram os conceitos de Intervenção e de Instalação, que no frigir dos ovos têm o mesmo espírito. Pode-se criar uma obra de arte sem pintar uma tela ou esculpir uma pedra: pode-se produzir uma obra que é apenas uma ação pensada, deliberada, com uma intenção específica, para produzir um acontecimento. O século 20 foi o rito de passagem entre o Moderno e o Pós-Moderno. O Moderno foi o ambiente cultural em que os artistas se dedicaram a estilhaçar e recompor tudo que tinha sido criado antes; foi o momento da derrubada de barreiras, da interpenetração de mundos que até então eram estanques, mutuamente inacessíveis. O Pós-Moderno foi por um lado a radicalização desse processo (para os mais críticos foi um exagero grotesco desse processo) e por outro lado a tentativa de recompor novas fronteiras, novas linhas demarcatórias (p. ex., novos gêneros) no meio do vale-tudo que estava imperando, aquele ambiente amorfo em que tudo é arte, todo mundo é artista, todo gesto é um gesto estético e assim por diante.

Vou dar um exemplo de gesto estético que se transforma em algo inesperado. Existem as pessoas com mente catalográfica, como os autodidatas que se dedicam a ler, por ordem alfabética, todos os livros de uma biblioteca (vide A Náusea, de Sartre). Existem pessoas nominalistas, para quem o nome da coisa é igual à coisa, como o artista plástico que organiza uma exposição numa cidade distante só porque o nome dela é o mesmo sobrenome dele (vide Paulo Bruscky expondo em Brusque, SC). Existem pessoas ritualizadoras de simulacro, que se dedicam a reproduzir, na vida real, coisas que só existiam em obras de ficção (a cavalgada da Pedra do Reino, em Belmonte).

Na década de 1890, Eugene Schiffelin, um entusiasta norte-americano da obra de Shakespeare, teve a idéia de trazer para a América casais de todas as aves citadas nas peças do Bardo. Fez uma lista, e começou a trazer os passarinhos. Entre eles estava o estorninho (“starling”), que é um pássaro capaz de imitar a voz humana (algo como um mainá). É citado apenas uma vez por Shakespeare, na peça Henrique IV (ato 1, cena 3), quando Hotspur, proibido pelo rei de falar no nome de Mortimer, diz: “Quando o rei dormir, gritarei ao seu ouvido: Mortimer! Não, melhor ainda: ensinarei um estorninho a dizer apenas ‘Mortimer!’, e lho darei de presente, para manter sua ira em funcionamento”.

Os cem estorninhos trazidos da Europa e largados no Central Park, em Nova York, prosperaram inesperadamente (a maioria das aves sucumbe fora do seu habitat nativo). São hoje mais de 200 milhões no país inteiro. Extinguiram espécies nativas. Adaptaram-se ao local e invadiram os lugares de aves migratórias que, quando retornam, vêm sua área ocupada. Foi um gesto poético, artístico – e uma instalação biológica, que alterou para sempre a fisionomia da fauna de um país. Arte pós-moderna em que o Acaso e a Intencionalidade se potencializaram mutuamente.

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