segunda-feira, 21 de junho de 2010

2174) Objetos indestrutíveis (25.2.2010)



Menos conhecido do que Marcel Duchamp, o fotógrafo Man Ray (1890-1976) foi ligado ao movimento surrealista nas décadas de 1920-30, e produziu uma série de trabalhos notáveis, inclusive alguns curta-metragens que hoje podem parecer ingênuos, mas naquele tempo eram uma maneira diferente de tratar a fotografia, a montagem e as imagens abstratas. (Este é um dos problemas das vanguardas. Muitos trabalhos vanguardistas têm algo de jardim-da-infância, têm algo da experimentação descontraída e brincalhona de quem está manipulando uma nova tecnologia ou linguagem apenas para se divertir, para ver no que dá. Isto faz com que, num ciclo que se repete a tantas décadas, as mesmas experiências venham a ser refeitas por jovens que ignoram as experiências de jovens da geração dos seus avós.)

Um dos trabalhos mais curiosos de Man Ray (ver em: http://bit.ly/5yOqxA) data de 1923. Consta de um metrônomo comum (instrumento mecânico de marcar o andamento musical) em cuja haste (a parte metálica que oscila ritmicamente de um lado para o outro) ele colou a foto de um olho humano. É um desses objetos surrealistas que ao mesmo tempo pedem e recusam explicação. Man Ray deu-lhe o título “Objeto para ser destruído”, e a obra passou a cumprir o seu destino de galerias, exposições, sei lá que mais. O título era uma provocação, claro, muito parecida com a que Abbie Hoffman fez anos depois ao intitular seu manual de contestação ao capitalismo Roube este livro (“Steal this book”).

Ora, os vanguardistas jogam tantas pedras pra cima que cedo ou tarde uma lhes cai na cabeça. Consta que em 1957 um grupo de estudantes entrou na galeria onde a obra de Man Ray estava sendo exposta, em Paris, e, bradando palavras de ordem contra os surrealistas, destruiu a peça a tiros de revólver. Man Ray não gostou nada disso (ao que parece, ele tinha idéia de destruí-la um dia ele próprio, numa performance pública), mas pegou o dinheiro do seguro, fabricou 100 objetos idênticos, e deu-lhes o nome “Objeto Indestrutível”. Foi como se dissesse aos protestadores: “E aí? Vai encarar?”.

Isto pode demonstrar, para alguns, o caráter metafísico e platônico, da obra de arte, que não é aquele mero objeto físico com que entramos em contato. Ou pode ser uma exibição de força do capitalismo, da ”obra de arte na época de sua reprodutibilidade técnica”, impossível de extinguir por completo, porque se multiplica como um vírus. Pra mim, acima de tudo, mostra que ao artista deve caber sempre a última palavra, o cala-a-boca final, o derradeiro prego na tampa do caixão. Contra vândalos, contra dissidentes, contra adversários ideológicos. Contra os críticos, os teóricos acadêmicos, as autoridades, a censura, o clero, a polícia, o Estado, o Mercado. Artista não tem que bater boca com gente que discorda dele. Tem que achatar todos eles com uma resposta sem palavras. Tem que produzir uma resposta irrespondível, cabal.

2 comentários:

  1. ... e essa resposta do artista, eu acrescentaria, é o Conceito. Não exatamente uma ideia platônica, um mero reflexo embaçado de uma realidade fora do alcance, mas um ato criador, uma intervenção que rompe o senso comum, traz elementos novos à nossa experiência no mundo...

    POr essa época, os dadaístas mostravam que, em resposta a uma arte de objetos e pretensas belezas, incapaz de impedir o horror da Guerra, caberia ao artista demolir as falsas certezas, romper as formas que ajustam os homens qo que é considerado certo, ou Justo.

    Numa sociedade em que as máquinas permitem reprodução infinita de imagens, não há por quê limitar-se a produzir novas imagens, restringir o campo da arte ao terreno do Belo, não é mesmo?

    Mas é belo esse metrônomo, viu? Para quem quiser ver cara a cara (cara a olho) um desses metronomos do Man Ray, uma sugestão é o museu Reina Sofia, em Madri, onde um desses marca o compasso, implacável, caro Bráulio.

    (e só hoje vi que meu Machado serviu honrosamente, para ilustrar um _ ótimo _ de seus postos nesse belo blogue; obrigado, seu Tavares!)

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  2. Talvez o seu Machado me tenha sido repassado por Fraga (de Porto Alegre), que se comoveu com minhas crônicas e me mandou um monte de imagens excelentes. Valeu este encontro virtual!

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