sexta-feira, 18 de junho de 2010

2170) Os restaveks do Haiti (20.2.2010)




Eles são onipresentes e invisíveis. Esquecemo-nos de sua existência no mesmo instante em que fazemos um gesto com a mão indicando “cai fora, não enche”. Surgem e desaparecem como pombos numa praça.  

São os meninos comedores de luz, que voam pelos céus do Brasil, na canção de Chico Buarque. São os meninos-sem: sem teto, sem pai, sem mãe, sem escola, sem vergonha, sem escrúpulos, sem dó nem piedade.

No romance The Translator de John Crowley (2002), um poeta russo, Innokenti Falin, migra para os EUA, torna-se professor numa Universidade e ali começa uma amizade com Kit Malone, sua aluna e futura tradutora de sua obra. 

Falin explica a ela que não sabe quem é, ou melhor, não lembra dos seus pais, ou do que lhe aconteceu até os 6 ou 7 anos, quando foi encontrado por outros garotos de rua numa estação de trem. “Era muito comum durante a II Guerra”, diz ele; “famílias eram separadas, os pais eram mortos, ou então estavam viajando com os filhos, desciam do trem para procurar comida, e o trem ia embora sem eles”. 

A infância é um buraco negro na história desse protagonista misterioso (o final do livro, durante a crise dos mísseis de Cuba, aponta de leve para um desfecho fantástico).

Falin explica que há um nome em russo para isso: “besprizornye”, que significa mais ou menos “sem alguém que cuide deles, sem ter onde ficar, sem ter quem ligue para eles” (“without guardian, unsheltered, not cared for”). 

Outro poeta russo, conversando anos depois com Kit Malone, conta de uma viagem de trem que fez na infância com seus pais. Desceram numa estação para esticar as pernas e, olhando embaixo do trem ele viu que “embaixo do vagão onde viajávamos estavam penduradas outras crianças, vultos escuros, que mal pareciam humanos, cinco, dez, uma dúzia ou mais. Fugimos gritando: ‘Besprizornye! Besprizornye!’”.

Crowley lembra dois termos em inglês (que são a cara dos romances de Dickens) para essas criaturas: “urchins” e “ragamuffins”. 

Em português o termo mais vigoroso é “pivete”, mais específico do que descrições frouxas como “menino de rua” ou “menor abandonado”. 

O cinema já os mostrou em filmes como Tire dié de Fernando Birri (Argentina, 1960), em que os garotos correm ao lado do trem pedindo que “atire dez!” (centavos), ou em Sciuscià de Rossellini (Itália, 1946), garotos engraxates que se oferecem para engraxar sapatos (“shoe shine”), ou Los olvidados de Buñuel (México, 1950).

O terremoto do Haiti trouxe mais um nome para essa galeria de anônimos. O Haiti é país de colonização francesa, e no interior é comum mandar um filho pequeno para a cidade, para ficar na casa de alguém conhecido, porque os pais não podem sustentá-lo. 

São chamados “os restaveks”, que vem de “rester avec”, “ficar com (Fulano)”. 

Imagino às vezes um mundo do futuro, um mundo pós-socialismo, pós-capitalismo, pós-riqueza, pós-pobreza, pós-civilização, onde só existirão restaveks, besprizornye, urchins, ragamuffins, sciusciàs, tire diés, pivetes.  





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