terça-feira, 15 de junho de 2010

2156) Mais um Sherlock Holmes (4.2.2010)



Jorge Luís Borges, criticando a dublagem do cinema argentino do seu tempo, comparou o Minotauro, que tinha cabeça de touro e corpo de homem, com o monstro produzido pela dublagem, que tinha “rosto de Greta Garbo e voz de Aldonza Lorenzo.” A mais recente criatura teratológica em circulação habita as telas do filme de Guy Ritchie, e combina o nome de Sherlock Holmes e a pessoa física de Robert Downey Jr. O ator talvez seja o menos culpado, porque já admitiu, em entrevistas, que seu personagem tem mais a ver com James Bond do que com o detetive de Conan Doyle. (Por falar nisso, o Sean Connery dos anos 1970 não teria feito um Holmes aceitável?)

Não devemos nos iludir com a questão superficial da semelhança física. Holmes era alto, longilíneo, dolicocéfalo, capaz de ímpetos de energia física e de semanas inteiras de letargia absoluta; um tipo cerebral, introvertido, obsessivo. (Que tal Fred Astaire?...) Downey Jr., que é bom ator, faz o que pode, não para se parecer com Holmes, o que é impossível, mas para encarnar um personagem com algumas dessas características; consegue, em vários momentos. Holmes já foi vivido por Christopher Plummer e por Charlton Heston, mas não acredito que, fora a altura, os dois tenham contribuído com muita coisa. Baixinho por baixinho, já tivemos no papel Peter Cushing (e também, curiosamente, sua eterna nêmesis, Christopher Lee). Os meus Holmes preferidos foram o clássico dos anos 1940, Basil Rathbone, e os mais recentes Michael Caine (no divertido Without a Clue, 1990) e Nicol Williamson (A Solução Sete por Cento, 1976).

Depois de ver o filme de Guy Ritchie dei uma passada rápida em vários saites e percebi que praticamente todas as críticas (positivas e negativas) se concentram num único aspecto: o filme é fiel ao personagem? Fala-se pouco do enredo (que é satisfatório para os padrões atuais), da direção de arte (excelente), dos efeitos especiais (muito bons), do resto do elenco (variável). O que os críticos discutem é: parece ou não parece com Holmes?

Dizem que o detetive é o personagem literário mais adaptado pelo cinema, de modo que a esta altura ele já deve ter passado por todas as deformações possíveis. Prova de sua invulnerabilidade é o fato da cópia número 975 ainda ser comparada ao original, e não à cópia 974. Nenhum personagem foi tão adaptado, retalhado, reformatado, procusteado e deformado quanto Holmes. O filme de Guy Ritchie pode se gabar inclusive de ter produzido, com Jude Law, um Watson à altura do protagonista, e à altura dos melhores momentos do Watson literário. Watson é um ex-soldado, tem coragem pessoal, envolve-se em confrontos físicos ao lado de Holmes (que praticava, sim, artes marciais orientais e o box-savata francês). Há numerosos exemplos, nos contos, de deduções suas elogiadas por Holmes, comprovando que ele é pelo menos um bom aluno. Criar um Watson não ridículo é mais uma das qualidades deste filme.

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