quinta-feira, 15 de abril de 2010

1915) O texto do encarte (29.4.2009)




Seria uma experiência curiosa. Pegar vinte poemas de vinte poetas desconhecidos e misturá-los a vinte letras de canções desconhecidas, imprimir tudo misturado, e pedir a um crítico literário metido a esperto (eu, por exemplo) para distinguir ali o que era poema e o que era letra. 

 Seria mais ou menos como pegar dez quadros abstratos de gente que vale 5 milhões de dólares (Kandinsky, Jackson Pollock), misturá-los a dez quadros abstratos comprados na feira da Praça General Osório, chamar um grupo de críticos de arte e dizer-lhes: “Bote preço!”.

Por que isto? Porque os críticos são burros e só sabem o que é feijão e o que é arroz se alguém lhes disser antes? Acho que não. 

Uma obra de arte pode ser avaliada apenas pelo que apresenta aos olhos desprevenidos e ao espírito despreparado. É um texto para ser lido, uma imagem para ser vista, e o leitor ou observador que se identifique ou não com ela. 

Sem saber quem a fez ou de onde ela veio, o crítico que improvise ali seus próprios critérios de avaliação diante da obra nua e crua, não-assinada, não-identificada, não-contextualizada. Toda obra nos diz: “Te vira”.

Mas toda obra existe num contexto, e fica empobrecida em algum aspecto quando é despregada desse contexto. Curiosamente, isto desvaloriza algumas obras e valoriza outras. 

Voltemos ao exemplo acima. Um observador casual pode achar um quadro de Jackson Pollock “uma borradeira sem graça e de mau gosto” se o vir afastado do contexto dos museus e das galerias milionárias; talvez não achasse isto se a visse amparada e avalizada por este contexto. 

E, inversamente, um quadro que ele olharia com indiferença na feira hippie dominical poderia se valorizar, se afastado desse contexto de banalidade. Talvez fosse considerado uma obra revolucionária, até, por um espectador que, sem maiores referências, não soubesse distinguir nela o que há de diluição e de imitação do já visto.

Voltemos ao primeiro exemplo de todos. O que distingue, em primeiríssimo lugar, uma letra de música de um poema? Para mim, é o contato que temos com cada um. 

 O poema é lido num livro ou revista. 

 A letra de música é escutada nos alto-falantes de um aparelho de som. 

Porque aquilo que está impresso no encarte do CD (repetirei isto até a morte) não é a letra da música, é apenas um texto referencial que ajuda a entendê-la ou lembrá-la. A letra de uma música se perde, no papel, porque não é um conjunto de palavras impressas, é um conjunto de sons cantados, assim como a melodia da música não é um conjunto de notas escritas numa partitura, são os sons que escutamos quando a música é tocada.

O poema escrito é ele próprio, é o próprio poema. 

Uma letra de música escrita no encarte, no entanto, não é a letra da música. É apenas uma cifra, um código, uma descrição, que tem uma relação 1-por-1 tão grande com a letra da música (aquelas palavras que a cantora está cantando) que chegamos até a pensar que as duas são a mesma coisa. Mas não são.





4 comentários:

  1. Embora muitos consideram que a poesia se revela na sua plenitude apenas na leitura ou audição em voz alta, haja visto que indubitavelmente trabalha não apenas com o sentido, mas também com as sonoridades das palavras. Se existe esta dicotomia entre letra de música e poema, ela me parece mais complexa do que a simples oposição suporte escrito/suporte sonoro.

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  2. Uma letra de música ou um poema depois de musicado vira música e música não tem palavras.

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  3. É interessante ver a defesa de Bob Dylan para o Nobel de Literatura. Eles justificaram citando a relação dos gregos com a poesia. Ela era cantada, recitada. Como ainda hoje em São José do Egito.

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  4. O poema, desde quando se ouviu falar do primeiro, era um gênero puramente oral, declamado na hora, de improviso, elemento mais puro da retórica e fluência verbal... começaram a escrever e registrar o que se declamava... ainda bem que temos registros de Homero, Esopo, Hesíodo e etc... talvez, no máximo, batiam com os pés para contar os jambos, coisa de ritmo, métrica, facilitava a chegada da rima... elementos que poucos estudam hoje, depois dos versos livres; a música, do contrário,quando ainda não contava com a letra, a despeito de não tê-la, podemos dizer que era gênero escrito, havia, sim, partituras... e quem não as soubessem ler, não poderia tocar instrumento; hoje falam dos que tocam de ouvido sem saber mesmo o que são cifras, sem falar nos pentagramas, local da escrita de como elas realmente devem funcionar... coloca-se a clave, o compasso, as notas das semínimas às colcheias, os andamentos, ensaia-se, faz-se o arranjo respeitando possíveis sustenidos e seu retorno via bemol, e finalmente se executa aos ouvidos... quem sabe ler partitura poderá escrever algumas delas. Essa dicotomia do que é poesia e música é igual a muitas outras... há quem diga que poesia é poesia e que música é musica, há quem diga que são a mesma coisa... evoluíram tanto, da antiga, medieval, gregoriana, clássica, barroca, romântica, moderna, pós-moderna, contemporânea, ficcional, fantástica, psicodélica e pós-ficcional... Para se ouvir música sem letra é preciso quem a crie, ESCREVA, quem toque e quem reja; para se ouvir um poema também é preciso quem o crie, ESCREVA, alguém que o declame, de preferência por um ato performático, além de outros atores. Penso que há, de muito para cá, uma relação de dependência entre elas... penso que se misturam... agora vou pegar minha harpa e dedilhar Danny Boy, depois a rabeca chorará uma música que fiz para o mestre Mané Pitunga, e na madrugada, ah... na madrugada... ouvirei o tricórdio do saudoso amigo Lula Cortes... hoje, exatamente hoje, sinto seis meses e meio de saudades, ou será desengano? Desengano, por sinal, é um excelente exemplo de poesia e música, afinal, em muitos casos, não se sabe quem nasceu primeiro! Mac.

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