Artigos de Braulio Tavares em sua coluna diária no "Jornal da Paraíba" (Campina Grande-PB), desde o 0001 (23 de março de 2003) até o 4098 (10 de abril de 2016). Do 4099 em diante, os textos estão sendo publicados apenas neste blog, devido ao fim da publicação do jornal impresso.
domingo, 11 de abril de 2010
1897) Poe: o olho-câmara (8.4.2009)
(foto: sydfish.wordpress.com)
Edgar Allan Poe tinha um olho moderno. Enxergava as coisas de uma maneira muito diferente do modo como seus contemporâneos as enxergavam, e parecida com nosso modo de enxergá-las hoje. Muitos indivíduos têm um modo diferente de ver o mundo, mas isto não fará deles “modernos” um dia. Moderno é, em retrospecto, alguém que tinha tempos atrás certas características que hoje achamos típicas do nosso tempo. Isto recupera e revive as obras que escreveram. Por mais diferentes que sejam da literatura de hoje, têm algo com que nos identificamos. Poe certamente teve centenas de contemporâneos talentosos e diferenciados. Para azar deles, o mundo não evoluiu na direção da visão deles, e sim na direção do modo-de-ver de Poe. Para um cara tão azarado como Poe, este pouco de sorte serve de consolo.
Em seu detalhado ensaio Fiction and the Camera Eye – Visual Consciousness in Film and the Modern Novel (1976), Alan Spiegel compara os estilos de descrição e visualização de vários escritores, com ênfase em Balzac, Flaubert, James Joyce. Diz ele que a cada geração sucessiva a literatura veio criando maneiras diferentes de visualizar verbalmente o mundo que descrevia. Spiegel dá (e analisa exaustivamente) exemplos esclarecedores retirados da obra desses autores, e mais de Henry James, Joseph Conrad, Virginia Woolf, Hemingway e outros. Ele não cita Poe; mas o “olho câmara” de Poe mereceria um estudo à parte.
Poe é moderno nesse sentido, porque antes de todos esses outros ele não apenas criou um estilo pessoal de descrever ambientes, mas também infiltra em suas narrativas pequenos detalhes de observação. Sua mente analítica não apenas observa o que acontece, observa também os observadores, e como é feita a observação. Seu conto “A Esfinge” fala do avistamento de um monstro gigantesco numa colina, que depois ele revela ser apenas um pequeno besouro caminhando na vidraça através da qual o narrador avistava a colina. É um conto emblemático do modo com que Poe percebia o ato de ver – com um distanciamento analítico que talvez já fosse usual em sua época, entre cientistas e filósofos, por exemplo, mas não era tão usual na literatura do seu tempo.
Poe explora repetidamente, nos seus contos, aquelas situações-limite, em que um indivíduo, seja ameaçado por um grave perigo, seja no clímax de uma prolongada tensão nervosa, seja por testemunhar algum fato espantoso e inexplicável, vê-se possuído por uma acuidade de visão extraordinária. “Visão”, aqui, entendido menos no aspecto ocular do que psicológico. Não apenas a capacidade de enxergar, mas a de “ler o que vê”, interpretar de modo diferente as imagens captadas pelos olhos, atribuir-lhes valores que não são percebidos por pessoas comuns. O narrador de Poe é um visionário, alguém que vê mais, vê além, não no sentido de ver o que não existe, mas de ser o único que vê de maneira correta o que está à vista de todos mas não é percebido por ninguém.
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