Artigos de Braulio Tavares em sua coluna diária no "Jornal da Paraíba" (Campina Grande-PB), desde o 0001 (23 de março de 2003) até o 4098 (10 de abril de 2016). Do 4099 em diante, os textos estão sendo publicados apenas neste blog, devido ao fim da publicação do jornal impresso.
domingo, 11 de abril de 2010
1896) O homem que perdeu seu reflexo (7.4.2009)
A imprudência fatal na vida de Ladislau Bartolo foi bater de frente com o dono das Comunicações Cosmos, o famigerado Dr. Sardônio. Sofreu demissão sumária por justa causa, perseguição por capangas, intimidação da família... Experimentou o cardápio completo de quem afrontava o cacique. O desemprego, a pobreza e o álcool o mataram anos depois, na indigência de um hospital público.
Mas a vingança não parou por aí. Quando uma coligação partidária nomeou o magnata para o Ministério da Palavra, talvez ele já tivesse, não propriamente perdoado, mas esquecido as críticas de Ladislau. O mais provável é que algum dos seus apaniguados tivesse guardado rancor ao jornalista; e ele foi declarado extinto.
Percebi isto ao vivo, no ar, em tempo real. Ladislau, boêmio e poeta, era parceiro em algumas cançonetas gravadas por cantores obscuros. Uma madrugada, estava eu de locutor no programa “Voo Noturno”, da Rádio Vox Libris. Sentado à mesa manuseava papéis enquanto uma dama de voz plangente desfiava sua dor-de-cotovelo.
Encerrada a música, peguei a ficha da programação e li distraído, pensando noutra coisa: “Acabamos de ouvir, com Marilda Calheiros, ‘Lágrimas de Cada Adeus’, de Vítor Gonçalves e Ladislau Bartolo”. Os head-phones ecoaram minhas palavras, mas depois do “Vitor Gonçalves e...” houve um quase imperceptível delay, e minha voz, transcodificada, recomposta digitalmente, fonema a fonema, disse: “Valdemar Barreto”. Assim. Sem mais nem menos. Olhei o técnico por trás do vidro do aquário. Folheava um gibi, bocejava como sempre, nada percebeu.
Entendi tudo e fui checar as provas da existência de Ladislau, afinal era meu ex-colega de emissora.
Na foto enorme do andar térreo, tirada no aniversário da rádio dez anos atrás, Ladislau fora substituído por alguém, também moreno e magro, mas que não era ele.
Nos dias seguintes, nos exemplares encadernados do jornal, no arquivo, vi, no lugar de suas colunas, outros textos e outros nomes. Nada na papelada trabalhista. Nada no setor de pessoal. Consultei os velhos livros de ponto, lembrando as vezes em que chegáramos e assináramos juntos: a assinatura esmaecida ao lado da minha já era outra.
Abordada na rua, a filha pequena de Ladislau afirmou ser órfã de um tal de Laércio. O desbaste tinha sido minucioso, implacável. Nome, imagem, memória, tudo varrido do mapa pelo ressentimento e pelo menosprezo de um potentado republicano.
Ao voltar para casa, à noite, acendi um cigarro, e me desviei do meu trajeto para passar em frente à casa em que Ladislau nascera, e que me mostrara algumas vezes. Parei na esquina de sempre, vi o sobrado de sempre do lado esquerdo, e do lado direito o fundo de quintal de uma mansão que dava a frente para o quarteirão oposto.
E entre os dois, onde houvera a casinha modesta da família Bartolo, havia agora uma igreja do século 18, meio estragada, mas com uma placa de tombamento do Instituto Histórico. Joguei fora o cigarro e fui dormir.
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