domingo, 11 de abril de 2010

1896) O homem que perdeu seu reflexo (7.4.2009)




A imprudência fatal na vida de Ladislau Bartolo foi bater de frente com o dono das Comunicações Cosmos, o famigerado Dr. Sardônio. Sofreu demissão sumária por justa causa, perseguição por capangas, intimidação da família... Experimentou o cardápio completo de quem afrontava o cacique. O desemprego, a pobreza e o álcool o mataram anos depois, na indigência de um hospital público. 

Mas a vingança não parou por aí. Quando uma coligação partidária nomeou o magnata para o Ministério da Palavra, talvez ele já tivesse, não propriamente perdoado, mas esquecido as críticas de Ladislau. O mais provável é que algum dos seus apaniguados tivesse guardado rancor ao jornalista; e ele foi declarado extinto.

Percebi isto ao vivo, no ar, em tempo real. Ladislau, boêmio e poeta, era parceiro em algumas cançonetas gravadas por cantores obscuros. Uma madrugada, estava eu de locutor no programa “Voo Noturno”, da Rádio Vox Libris. Sentado à mesa manuseava papéis enquanto uma dama de voz plangente desfiava sua dor-de-cotovelo. 

Encerrada a música, peguei a ficha da programação e li distraído, pensando noutra coisa: “Acabamos de ouvir, com Marilda Calheiros, ‘Lágrimas de Cada Adeus’, de Vítor Gonçalves e Ladislau Bartolo”. Os head-phones ecoaram minhas palavras, mas depois do “Vitor Gonçalves e...” houve um quase imperceptível delay, e minha voz, transcodificada, recomposta digitalmente, fonema a fonema, disse: “Valdemar Barreto”. Assim. Sem mais nem menos. Olhei o técnico por trás do vidro do aquário. Folheava um gibi, bocejava como sempre, nada percebeu.

Entendi tudo e fui checar as provas da existência de Ladislau, afinal era meu ex-colega de emissora. 

Na foto enorme do andar térreo, tirada no aniversário da rádio dez anos atrás, Ladislau fora substituído por alguém, também moreno e magro, mas que não era ele. 

Nos dias seguintes, nos exemplares encadernados do jornal, no arquivo, vi, no lugar de suas colunas, outros textos e outros nomes. Nada na papelada trabalhista. Nada no setor de pessoal. Consultei os velhos livros de ponto, lembrando as vezes em que chegáramos e assináramos juntos: a assinatura esmaecida ao lado da minha já era outra. 

Abordada na rua, a filha pequena de Ladislau afirmou ser órfã de um tal de Laércio. O desbaste tinha sido minucioso, implacável. Nome, imagem, memória, tudo varrido do mapa pelo ressentimento e pelo menosprezo de um potentado republicano.

Ao voltar para casa, à noite, acendi um cigarro, e me desviei do meu trajeto para passar em frente à casa em que Ladislau nascera, e que me mostrara algumas vezes. Parei na esquina de sempre, vi o sobrado de sempre do lado esquerdo, e do lado direito o fundo de quintal de uma mansão que dava a frente para o quarteirão oposto. 

E entre os dois, onde houvera a casinha modesta da família Bartolo, havia agora uma igreja do século 18, meio estragada, mas com uma placa de tombamento do Instituto Histórico. Joguei fora o cigarro e fui dormir.





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