Artigos de Braulio Tavares em sua coluna diária no "Jornal da Paraíba" (Campina Grande-PB), desde o 0001 (23 de março de 2003) até o 4098 (10 de abril de 2016). Do 4099 em diante, os textos estão sendo publicados apenas neste blog, devido ao fim da publicação do jornal impresso.
terça-feira, 30 de março de 2010
1846) O jornal intacto (7.2.2009)
(Dorothy L. Sayers)
Há poucas maneiras mais agradáveis de começar o dia do que sentando à mesa, diante de um café da manhã substancial e sortido, com café recém-passado, e abrir o jornal do dia para iniciar nosso gradual retorno à vida real, depois de uma noite inteira no Mundos dos Sonhos. O jornal novo, cheirando a tinta e a rotativas, é um ingrediente crucial neste processo. O que me lembra um trecho do famoso conto “Suspicion”, de Dorothy L. Sayers, em que o protagonista, Mr. Mummery, recomenda a sua esposa: “A propósito, querida, por favor recomende à cozinheira que, se ela quer mesmo ler o jornal pela manhã, antes que eu desça para o café, eu ficaria muito grato se ela o dobrasse depois, bem cuidadosamente.” A esposa brinca com ele, dizendo que ele é cheio de manias, e a narradora diz: “Mr. Mummery soltou um suspiro. Ele não conseguia explicar que lhe era importante, por algum motivo, que o jornal da manhã chegasse às suas mãos liso e intacto, como uma virgem. Mulheres eram incapazes de compreender essas coisas”.
Já falei disto em “A flor do coco”(27.11.2005). É a nossa necessidade do novo, do intacto, do que durante todo o tempo esteve se guardando, à nossa espera. Amigos meus que dirigem automóvel sentem tal afeição por essas engenhocas que lamentam não serem capazes de engarrafar num frasquinho o “cheiro de carro novo”, para aspirá-lo quando a carência ficar muito grande. Não mango deles porque sou do tipo que gosta de cheirar as páginas de um livro, tanto faz que seja velho quanto novo. Papel de livro tem sempre um cheiro próprio e único. Alguns há que nem têm grande valor literário, mas os mantenho em minhas estantes somente por causa do perfume único e inimitável de suas páginas.
O café recém-passado, o jornal cheirando a tinta... Tudo isto nos garante a sensação da vida voltando a desabrochar, da máquina do mundo abrindo-se para nós como se abriu para Carlos Drummond, oferecida, desfrutável, “como uma virgem”, intacta na sua pureza e tentadora na sua oferta. Após uma noite de sono o mundo nos recebe de volta, através do jornal dobradinho e liso, para que desdobremos sua primeira página e vejamos o rosto multifário da Vida. Não importa se as notícias nos alarmam com enchentes, quedas de aviões, quebras da Bolsa, atentados, potentados. É o ato de recebê-las prontas que nos dá o piso mínimo de normalidade-das-coisas, sem a qual ninguém se anima a encarar o dia à frente.
Não há sensação maior de sacrilégio do que procurar o jornal pela manhã e ver seus cadernos espalhados, as folhas amarfanhadas, uma ou outra caída no chão, como se fossem as ruínas de um vilarejo saqueado por vândalos que sumiram sem deixar outro rastro que o da destruição. Mr. Mummery estava certo. Mesmo que alguém insista em ler o jornal antes, por favor, recomponha-o, recoloque seus cadernos na ordem, dobre-o, alise-o, para que ele nos receba do jeito que é para ser.
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