terça-feira, 9 de março de 2010

1766) O mundo infra-real (6.11.2008)



(José J. Veiga)

Falei aqui nesta coluna sobre uma recordação de infância do poeta Gerardo Mello Mourão, de quando seu irmão de oito anos, antes de morrer, saiu pela casa se despedindo de todos os objetos: o pote, o caneco, a poltrona... Diz Mourão que existia, naquelas pessoas simples do interior, um apego afetivo às coisas. Não o apego materialista de quem se cerca de objetos caros, para ostentação, mas o apego sentimental que a gente desenvolve por coisas simples, que de tanto nos fazerem companhia parecem estar se humanizando, estar fazendo parte de nós mesmos.

Na mesma revista (Azougue 10 Anos, Rio, 2004), há outra entrevista com o escritor goiano José J. Veiga, autor de belos livros de contos regionais (Os Cavalinhos de Platiplanto) e curiosos romances fantásticos (A Hora dos Ruminantes). Veiga, da mesma geração de Gerardo, e também interiorano, ecoa, sem saber, o depoimento do colega, dizendo:

“Os objetos que você usa em casa, que fazem parte de sua vida como se fossem da família, suscitam um apego enorme. Quando acabam, quebram ou ficam inutilizados, me dá uma certa tristeza... Puxa, aquele aparelho de barba, tão bom, que eu tinha, caiu, entortou, não entra mais a lâmina... Que pena. Posso comprar outro, mas não é o mesmo. Tenho apego às coisas que me servem, das quais eu me sirvo”.

Esse amor aos objetos banais é, para mim, sintoma de um humanismo transbordante, de uma vontade de afeto, vontade de humanizar e de carregar de sentimento mesmo as coisas mais corriqueiras. Como dizia Drummond: “amor sem conta, distribuído pelas coisas pérfidas ou nulas”. No caso, distribuído pelas coisas ínfimas, pelos objetos caseiros, por pedaços de matéria a que ninguém lança um segundo olhar, e que, para esses humanistas incorrigíveis, alçam-se quase à condição de um animal doméstico a quem é preciso conceder uma atenção, um acarinhamento.

O que me lembra o “tamagochi”, os bichinhos eletrônicos que eram moda entre as crianças alguns anos atrás. Era uma espécie de videogame do tamanho de um celular, com um bichinho virtual que era preciso alimentar, cuidar, dar carinho... Se o tamagochi fosse esquecido, “morria”. E já vi histórias de crianças que por descuido perdiam seu tamagochi e desfaziam-se em lágrimas. Lágrimas que eu achava idiotas: “Em vez de criar um cachorro ou um hamster, esses cyberboys ficam levando a sério um mero agregado de bytes made-in-Taiwan, como se fosse um bicho de verdade!”

Mal sabia eu que é melhor ter afeto por um tamagochi ou um aparelho de barba do que não tê-lo por um peixe de aquário ou um passarinho de gaiola, como muitos por aí. O grande perigo para esses garotos viciados em games é a diluição da afetividade, a desvalorização da experiência única que é a vida: porque no jogo você tem sete vidas ou mais, aí morre, recomeça, nem liga. O game torna o mundo daqui menos real. Viva o tamagochi, viva tudo que nos leve a transbordar nossa afetividade até pelas coisas que não existem.

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