(Machado, por Stegun)
Este sempre foi um dos meus contos preferidos de Machado (em “Páginas Recolhidas”, 1899). Curtinho, semi-fantástico, filosófico, bem-humorado, é um apólogo com múltiplas leituras, que nunca se esgotam.
O narrador é Macedo, mais um dos gênios incompreendidos machadianos, um sujeito voltado para a investigação de assuntos abstrusos a fim de comunicar suas descobertas ao Museu Nacional, ao Instituto Histórico ou a universidades alemãs.
Ocorre-lhe entrar um dia numa loja de belchior, atulhada de objetos imprestáveis, e descobrir ali uma gaiola onde saltita um canário falante. A uma pergunta sua, o canário diz não saber o que é o céu, ou o sol, e assim define o seu mundo:
“O mundo é uma loja de belchior, com uma pequena gaiola de taquara, quadrilonga, pendente de um prego; o canário é senhor da gaiola que habita e da loja que o cerca. Fora daí, tudo é ilusão e mentira”.
Macedo se deslumbra, compra a ave e a leva para casa, onde lhe destina uma paisagem mais arejada, e gaiola mais hospitaleira. Passa a tomar notas copiosas:
“Era meu intuito fazer um longo estudo do fenômeno, sem dizer nada a ninguém, até poder assombrar o século com a minha extraordinária descoberta. Comecei por alfabetizar a língua do canário, por estudar-lhe a estrutura, as relações com a música, os sentimentos estéticos do bicho, as suas idéias e reminiscências. Feita essa análise filológica e psicológica, entrei propriamente na história dos canários, na origem deles, primeiros séculos, geologia e flora das ilhas Canárias, se ele tinha conhecimento da navegação, etc.”
A certa altura da pesquisa, Macedo volta a indagar do canário sua definição do mundo, para passá-la a limpo, e se surpreende.
“O mundo,” responde-lhe o pássaro, “é um jardim assaz largo com um repuxo no meio, flores e arbustos, alguma grama, ar claro e um pouco de azul por cima; o canário, dono do mundo, habita uma gaiola vasta, branca e circular, donde mira o resto. Tudo o mais é ilusão e mentira”.
Macedo adoece, e ao melhorar fica sabendo que o canário fugiu durante a limpeza da gaiola. Deixa-se abater pelo desespero, procura em vão, nenhum sinal da ave. Passa-se algum tempo. Um dia, visitando a chácara de um amigo, ouve o canário cumprimentando-o do galho de uma árvore. Implora-lhe que volte; não estará com saudade do jardim, do repuxo?... O canário afirma nunca ter visto semelhante paisagem, e, indagado sobre o que é o mundo, responde com firmeza:
“O mundo é um espaço infinito e azul, com o sol por cima”.
É uma recriação da parábola dos três brâmanes cegos, que apalpam um elefante e o descrevem pelas partes que lhes tocam. Do canário de Machado pode-se dizer que evolui, mesmo que sua visão-do-mundo seja fenomenológica, capaz de conceber apenas o que percebe a cada momento. É uma pequena sátira intelectual, com ironia, mas uma ironia simpática, pois o próprio Macedo não sabe se seu mundo é mais ou menos veraz que o do canário.
Gosto da frase "todo eu era canário", expressa bem o que se passou com macedo
ResponderExcluirPerfeito.
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