Artigos de Braulio Tavares em sua coluna diária no "Jornal da Paraíba" (Campina Grande-PB), desde o 0001 (23 de março de 2003) até o 4098 (10 de abril de 2016). Do 4099 em diante, os textos estão sendo publicados apenas neste blog, devido ao fim da publicação do jornal impresso.
domingo, 28 de fevereiro de 2010
1725) Machado: “O Anel de Polícrates” (21.9.2008)
(Machado, por Sergio Leo)
Este conto de Machado (em Papéis Avulsos, 1882) inspira-se na lenda de Polícrates, tirano da ilha grega de Samos. Cumulado de favores pela sorte, Polícrates temeu que o Destino lhe reservasse algum castigo. Um assessor o aconselhou a fazer um sacrifício, desfazendo-se de um bem precioso. Ele atirou ao mar um anel que prezava muito; no dia seguinte, o cozinheiro do palácio abriu o ventre de um peixe, encontrou o anel, e o devolveu ao rei.
É a versão benigna da tragédia grega. Não se pode fugir ao destino, e mesmo a sorte, quando insistente, parece uma maldição.
Isak Dinesen retoma a lenda (em “O Peixe”, no livro Contos de Inverno) para romancear a história do rei Erik da Dinamarca, que acha no ventre de um peixe um anel de pedra azul. Alguém reconhece nele o anel de uma dama da corte, Ingeborg, cujos olhos eram da mesma cor. O rei diz:
– Quando as mulheres formosas usam jóias, procuram harmonizá-las com alguma parte do seu rosto ou do seu corpo. Pérolas exprimem a beleza do seu colo ou dos seus seios; rubis e granadas evocam seus lábios, suas unhas, seus mamilos. Você me diz, então, que esta pedra é igual aos olhos dessa dama?...
A crônica se encerra dizendo: “Srig Andersen matou o rei Erik por vingança, depois que este seduziu sua esposa, Ingeborg”.
Freud comenta Polícrates no ensaio O Estranho (Das Unheimlich), observando que uma sorte excessiva, ou a sistemática realização de todos os desejos, não são algo para se desejar. Diz que o rei do Egito afastou-se de Polícrates horrorizado, ao ver que todos os desejos do amigo eram imediatamente satisfeitos, afirmando que “também o homem feliz tem que temer a inveja dos deuses”.
Freud vê nessa crença uma manifestação da crença na onipotência dos pensamentos, como se cada desejo intenso que experimentamos fosse imediatamente convertido em realidade.
Machado usa o anel para ilustrar com ironia sua teoria pessoal dos memes, para mim uma visão satírica da vida cultural do Rio, com todo mundo copiando, plagiando, imitando e apropriando-se de idéias alheias. Desenvolve o mesmo tema em “Evolução” (Relíquias de Casa Velha, 1906): o narrador diz uma frase a um conhecido, e no correr dos anos vê o outro repeti-la com pequenas variantes, assenhoreando-se dela pouco a pouco.
O protagonista de “O Anel de Polícrates", Xavier, é um típico personagem machadiano: o Sonhador Pródigo, o indivíduo com talento mas sem foco, que vive espalhando idéias, iniciando projetos que não leva a cabo, concebendo planos mirabolantes que nunca dão em nada. Machado reverte a alegoria da sorte, contida na lenda grega, usando o anel (a frase) como símbolo do caiporismo de Xavier. Inventor da frase, ele a ouve nos lábios deste e daquele mas não consegue memorizá-la de novo, apossar-se dela.
A frase é anel e ao mesmo tempo um peixe escorregadio ou ave arisca que sempre lhe foge: “Quando ele supunha pôr a mão em cima da idéia, ela batia as asas, plás, plás, plás, e perdia-se no ar, como as figuras de um sonho”.
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