Artigos de Braulio Tavares em sua coluna diária no "Jornal da Paraíba" (Campina Grande-PB), desde o 0001 (23 de março de 2003) até o 4098 (10 de abril de 2016). Do 4099 em diante, os textos estão sendo publicados apenas neste blog, devido ao fim da publicação do jornal impresso.
sexta-feira, 19 de fevereiro de 2010
1675) Cinema de animação (25.7.2008)
Tenho ido ao Anima Mundi, o festival internacional de filmes de animação que é uma das melhores coisas do Rio. E me ponho a pensar sobre questões de estilo. Digamos uma história assim: um homem vive sozinho num quarto de pensão. Todo dia, ao ir para o trabalho, ele joga uma moeda no chapéu de um mendigo na calçada. À noite, debruça-se na janela e fica olhando o apartamento no prédio em frente, onde, em salas e varandas iluminadas, uma família feliz se diverte. Ele fica cheio de inveja. Um dia puxa o revólver e, à distância, mata com um tiro o dono do apartamento. No dia seguinte, ao ir para o trabalho, não vê o mendigo no lugar habitual. Outro mendigo, ao lado, diz: “Morreu ontem de uma bala perdida”.
Uma historinha talvez boba; um fiapo de história, na verdade. Mas suponhamos que minha historinha fosse filmada por alguns animadores fictícios. O diretor “A” talvez optasse por mostrar personagens e ambientes através de silhuetas, traços rápidos sobre fundo branco, fazendo a transição entre uma forma e outra com os traços se libertando e se recombinando: a casa se desmonta e faz a rua, as linhas da calçada se arredondam e formam o chapéu do mendigo, tudo fluindo. Haveria fusões entre o homem solitário à janela e a janela oposta, cheia de movimento e música... Um solo de violino, ininterrupto, seria a trilha sonora.
O mesmo argumento seria usado pelo diretor “B” para um filme com bonecos de massinha. Ruas e casas pintadas em corres berrantes. Bonecos atarracados, hiperrealistas. O quarto da pensão um cubo com 30 cm de altura. Na hora do tiro, ele faria (como? não sei) a pequena bola de massinha se deslocar cruzando a rua até se espatifar em fragmentos no peito do boneco...
O diretor “C” poderia optar por animação em aquarelas, carregando no contraste entre o quarto sombrio do protagonista, a rua em tons mais abertos, com pastéis suaves, e o apartamento em festa usando técnicas mistas com pururinas ou lantejoulas misturadas à tinta. O homem atingido pela bala teria suas cores diluídas em água, até ficar totalmente preto-e-branco e imóvel.
O diretor “D” escolheria uma abordagem kafkeana, sombria, “noir”, cenários pintados a carvão e sobre eles fotografias de atores, recortadas e animadas com saltos bruscos e descontinuidades, uma trilha sonora com ruídos ásperos, guinchos eletrônicos, “charlestons” dos anos 1920...
Em nenhuma arte se vê a diferença entre “história” e “estilo” com tanta nitidez como na animação. O estilo é indizível. Não se pode escrever um roteiro dizendo coisas como “...nesse momento as cores se misturam, os traços revoluteiam uns sobre os outros, a imagem adquire uma textura de pergaminho antigo sobre o qual deslizam tatuagens marrons..” Isso tudo é estilo, a beleza visual das superfícies, é música para os olhos. Na literatura, estilo é criar com palavras algo que produza um efeito parecido, e que tem muito pouco a ver com a história contada.
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