domingo, 14 de fevereiro de 2010

1652) A vanguarda de Kenny G. (28.6.2008)



(Kenneth Goldsmith)

Eu tenho uma admiração instintiva pelas vanguardas, mesmo quando às vezes acho idiótico o que fazem. É a coragem de fazê-lo que me encanta. Outra coisa que nunca deixa de me seduzir numa vanguarda qualquer é ver que ela tem senso-de-humor. Um movimento vanguardista que consegue rir de si mesmo e do mundo é algo precioso. Nada mais chato do que o pessoal que revoluciona a Arte como se estivesse decretando uma falência ou invadindo Estalingrado. É o humor que me faz perdoar excessos em muitos grupos vanguardistas: o Surrealismo, a Patafísica, a Oulipo... Curiosamente são três movimentos literários franceses. Parece que só o humor consegue relaxar a crispação cartesiana dos francos.

Referi-me dias atrás ao poeta Kenneth Goldsmith, o criador (ou pelo menos o defensor mais ardoroso) da Poesia Conceitual. Goldsmith é o autor de Day, o livro que copia integralmente um número do “New York Times”, de 1 de setembro de 2000. É um calhamaço gigantesco, que pesa não-sei-quantos-quilos e que a maioria das pessoas concorda ser ilegível. Conceitualmente, isto coloca uma interessante questão: é ilegível porque é em formato de livro, no entanto todos os dias milhares de pessoas compram o seu equivalente em formato de jornal. Ninguém se sente na obrigação de lê-lo por inteiro, não é mesmo? Fico me perguntando se a situação seria diferente caso o exemplar escolhido por Goldsmith fosse o de 12 de setembro de 2001.

O poeta (assim ele é chamado) tem senso de humor. Ele mantém um programa semanal numa rádio de Nova Jersey sob o nome artístico de “Kenny G.”. Na abertura do saite da “Poetry Foundation” (http://poetryfoundation.org/dispatches/journals/2007.01.22.html) ele diz: “Sempre fiquei meio desconfortável ao ser chamado de poeta. Se Robert Lowell é um poeta, eu não quero ser poeta. Se Robert Frost era um poeta, eu não quero ser poeta. Se Sócrates foi um poeta, então eu considerarei a possibilidade”.

Goldsmith usa textos não-literários para produzir suas obras, como Weather (2005), a mera transcrição de um ano inteiro de boletins meteorológicos. Ele nos adverte sobre a importância de considerar os aspectos meramente físicos da escrita: “Se digitarmos um livro inteiro de Kerouac, aprenderemos mais sobre ele do que imitando seu estilo”. Sobre o livro em que copia o “New York Times”, ele se defende com eloqüência: “É o maior livro que já foi escrito. Tem tudo ali. Tem paixão, tem amor, tem guerra, tem ódio, tem vitória, tem derrota, tem homicídio, tem luxúria. E tem cotações da Bolsa. Lembra? Eles costumavam publicar as cotações da Bolsa”.

Quem quiser conhecer mais sobre esse fascinante tipo de literatura (não, colegas, não estou sendo sarcástico) pode visitar a UbuWeb em: http://ubu.com/concept/. Esse pessoal está para a literatura assim como os técnicos de estúdio e os luthiers estão para a música. Alguém terá coragem de chamá-los malucos, ou de negar-lhes entrada no templo?

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