Artigos de Braulio Tavares em sua coluna diária no "Jornal da Paraíba" (Campina Grande-PB), desde o 0001 (23 de março de 2003) até o 4098 (10 de abril de 2016). Do 4099 em diante, os textos estão sendo publicados apenas neste blog, devido ao fim da publicação do jornal impresso.
quarta-feira, 10 de fevereiro de 2010
1636) Um boi filosofando (10.6.2008)
(The Minotaur, de George Frederick Watts)
“Os seres humanos são angustiados por serem bípedes. Vivem sempre com medo de cair, por isso constroem tantas edificações, para servir-lhes de apoio. Falta-lhes a base sólida das quatro patas. Locomovem-se mal, sempre à feição de quedas para a frente. Uma perna os projeta para diante, como numa queda auto-produzida, e a outra perna tem que se adiantar para salvá-los deste pequeno suicídio; mas olhem, agora é esta própria perna salvadora que os arremessa de novo para diante e cabe à outra avançar para salvá-los. Como pode prosperar em paz uma espécie assim masoquista, sempre presa à vertigem da queda?
“Como não sabem caminhar, são forçados a inventar meios de transporte pesadíssimos, custosos, que demandam a brutal extração de milhões de toneladas de minérios. Destroem tudo em volta para poderem dispor desses veículos ruidosos, porque para eles caminhar é um suplício, e precisam ser conduzidos sentados de um local para outro. Como a vertigem da queda e da auto-destruição está gravada em seus cromossomos, fazem com que suas engenhocas mecânicas se projetem pelo ar ou rolem pelo solo a velocidades absurdas, que freqüentemente os levam a colisões, esfrangalhamento físico, mortandades coletivas. Tudo isto porque não aprenderam a caminhar de quatro.
“Não sabem se alimentar. Não sabem pastar em paz como o fazemos, nem são aparelhados para a caça como a onça e outros predadores nossos. São poucas as criaturas que eles conseguem abater com as mãos nuas. Criam, para a caça, instrumentos cada vez mais complicados e custosos, indo na contra-mão da Ciência que deveria possibilitar-lhes a evolução rumo ao mais simples e mais eficaz. Com os instrumentos acaba ocorrendo o mesmo que com os transportes. Seus criadores acabam sentindo-se na obrigação de utilizá-los o tempo inteiro, e utilizá-los no máximo de sua eficiência, o que significa que acabam utilizando-os contra si próprios, para que os instrumentos não fiquem ociosos.
“Vai ver que tudo decorre da tragédia que lhes sobreveio um dia: a de deixarem de fitar o chão. Quem fita o chão não esquece a terra. Quem fita o chão é obrigado a lembrar-se o tempo inteiro de que vive num planeta onde existem a terra, a grama, a areia, a pedra, as formigas, as minhocas. Quem fita o chão nunca esquece que faz parte dele. O homem desprendeu do chão sua metade da frente, verticalizou-se, lançou seu corpo no desequilíbrio e no trauma de uma queda permanentemente evitada. Deixou de prestar atenção no lugar onde pousa os pés para fixá-la no horizonte inatingível e no céu mais inatingível ainda. Começou a imaginar como seria chegar ao horizonte, e como seria pisar no céu como se fosse um chão. Enfeitiçado pelo horizonte, pôs-se em movimento. Enfeitiçado pelo céu, passou a desprezar a terra onde pisa, e esqueceu que é feito de terra, que vive da terra, que só come o que vem da terra – e que não passa, como nós, de uma refeição que a terra prepara para si própria.”
Já havia lido este texto maravilhoso em algum lugar. No livro, certamente não. Talvez aqui mesmo, da primeira vez que você o postou. A tradução é sua?
ResponderExcluirUm abraço
Olá, Tuca. Este texto é meu (não é tradução), e foi publicado apenas no Jornal da Paraíba, na data que tem junto ao título. Mas existe um texto parecido de Carlos Drummond, "Um boi vê os homens", que me deu a idéia. Você pode encontrá-lo nas antologias "Reunião" de Drummond, mas como estou em viagem agora não sei dizer em que livro específico tem. Vale a pena ler.
ResponderExcluirConheço o texto do Drummond, Braulio. Como você publicou o seu no JP há um ano e meio, alguém deve tê-lo me passado por e-mail. Leio muita coisa sua assim. E até hoje, me parece, nunca recebi um falso Braulio Tavares. Você tem mais sorte que o Veríssimo...
ResponderExcluirEstava pensando em indicar esse seu "Um boi filosofando" a um amigo, o artista plástico Hélio Jesuíno, que está recolhendo material sob o tema bestiário para fazer uma grande postagem em seu blog. Tudo ilustrado por ele. Aí comecei a brincar com uma imagem do Pensador do Rodin e... Vou passar a perna no Hélio e surrupiar seu texto para republicar no meu blog - junto com O Pensador bovinizado!
Abraço
Clap, clap, clap!
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