sexta-feira, 5 de fevereiro de 2010

1612) A pisa do Flamengo (13.5.2008)



Ainda estou tentando digerir a pisa de 3x0 que o Flamengo levou do América do México, no Maracanã, semana passada. Como um avestruz tentando digerir um bloco de mármore. Demora a descer, mas desce. O pior da demora é que o bloco não é esférico, é cheio de eriçamentos e anfractuosidades, como uma estrela-do-mar, por isso leva anos para descer. A derrota da Seleção Brasileira na Copa de 2006, por exemplo, não desceu ainda, e como as duas estão enganchadas não tenho outro remédio senão comparar uma com a outra.

O Flamengo transformou uma disputa numa festa, um jogo decisivo numa comemoração. Os papalvos dirão: “Como assim, jogo decisivo? Era um jogo que estava praticamente ganho!” Amigos, o jogo era tão decisivo que o Flamengo foi eliminado. Não se ganha jogo na véspera. E vejam a imensa ironia contida no erro retórico da expressão “era um jogo praticamente ganho”. Porque na verdade era um jogo “teoricamente ganho” – a prática só acontece quando rola a bola no gramado, e aí o time da Gávea sofreu uma das derrotas mais justas e mais indiscutíveis da sua história.

Eu mal tinha ouvido falar no América do México. Dele não sabia nem a cor da camisa. Mas tiro meu chapéu metafórico para esses 11 jogadores que deram ao Brasil inteiro uma aula de seriedade num jogo de futebol. Jogaram para ganhar, ganhar limpamente, na bola, na técnica, na tática; e ganharam. O Flamengo jogou para fazer exibição diante de sua torcida, que a estupidez dos cartolas e da imprensa carioca tentou (e parece que conseguiu) fazer tombar como patrimônio imaterial da Humanidade, ou alguma besteira desse tipo.

Entende-se por quê. O Flamengo tem um time medíocre (repito isto há anos) e quem lhe ganha os jogos é a torcida. Mas a vaidade de cartolas como Márcio Braga, Kleber Leite e companhia acha pouco. Quer transformar um jogo valendo a vaga numa entrega de faixas, numa despedida do técnico, com flores, placa comemorativa, e tudo o mais. Muito parecido com o que Ricardo Teixeira e seus apaniguados fizeram na Copa de 2006 com nossa melancólica Seleção, hospedada num castelo como príncipes encantados, e esquecendo o jogo.

A carruagem rubronegra começou a virar abóbora no vestiário, com as câmaras da Globo gravando “a última preleção de Joel Santana ao time campeão”... Time que abre seu vestiário para a imprensa perde a moral. Vestiário é lugar de trabalho, de concentração, de motivação, de discussão tática. Mas como no Brasil quem manda é a TV, é preciso abrir os vestiários para a TV, para o espetáculo, para a badalação dos puxa-sacos, para a comemoração antecipada de um jogo “praticamente ganho”. Os deuses do futebol não gostam disso. Quando viram o Flamengo vaidoso, auto-complacente, arrogante, não contaram conversa. Transferiram para o América do México a garra, a flama, a fibra. Nunca no futebol um resultado foi tão justo. E serve de aviso a todos os times que pensam que “o jogo de volta já está ganho”.

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