sábado, 9 de janeiro de 2010

1497) O estrangeiro e o estranho (30.12.2007)


(Jamie Bishop, R.I.P.)

Meses atrás um estudante coreano meio descompensado pegou em armas e fuzilou dez ou quinze colegas num campus universitário dos EUA. A notícia me chocou, acompanhei a cobertura, coisa e tal. Um mês depois, li na revista Locus que uma das vítimas fatais era Jamie Bishop, estudante de cinema de vinte e poucos anos, e filho do escritor de ficção científica Michael Bishop. Só então o verdadeiro horror do crime se abateu sobre mim. Por que? Porque Michael Bishop eu sei quem é, já li pelo menos dois grandes livros escritos por ele (Transfigurations e Apartheid, Superstrings and Mordecai Thubana). Bishop, e por tabela seu filho Jamie, pertencem ao meu mundo. As outras vítimas, não. São uma lista de nomes, uma sucessão de fotos. São (aos meus olhos solipsistas, que só reconhecem o que já me pertence) uma mera ficção.

Comentei nesta coluna o quanto fiquei chocado com os atentados a bomba em Bagdá que mataram gente durante as comemorações de uma vitória da seleção iraquiana de futebol. É a mesma coisa. A morte alheia só nos fere e só nos incomoda quando existe um fio invisível, por mais tênue que seja, nos ligando à pessoa que morreu. Pode ser um fiozinho da finura de um fio de aranha e com mil quilômetros de extensão, mas se esse fio sofre qualquer estremeço na outra extremidade isso nos toca, nos modifica, nos faz sentir alguma coisa. Não havendo esse fio, meu amigo, é como alguém dizer: “Morreram 20 milhões de russos na II Guerra Mundial”. Sim – e daí?

Encontrei na Wikipedia uma citação de uma frase anônima na Revue de Paris referindo-se à peculiaríssima moral dos cidadãos de Roma Antiga. Diz o texto: “Os romanos, que tinham apenas uma palavra, ‘hostis’, para designar tanto ‘estrangeiro’ quanto ‘inimigo’, esses romanos, que se riam nos espetáculos da arena, esses romanos ainda assim choravam, como qualquer outro, quando ouviam no teatro um ator recitar: ‘Sou homem, e nada do que é humano me é estranho’”.

Parafraseando Orwell, é o caso de dizermos que todos os homens são humanos, mas alguns são mais humanos do que os outros. Nosso sentimento de clã, de tribo, de família, depende desses filetes de sentimento e de identificação simbólica que nos unem a algumas pessoas mas não a outras. O curioso da citação é que a palavra latina “hostis” signifique ao mesmo tempo “estrangeiro” e “inimigo”. Percebe-se que nessa época conceitualmente nebulosa quem não era um dos nossos estava contra nós. Foi preciso uma certa evolução civilizatória para que os dois conceitos se apartassem. Curiosamente essa duplicidade de sentidos da palavra latina “hostis” nos deu termos que a refletem de forma distante: “hostil” (alguém que nos ameaça), e a palavra inglesa “host”, anfitrião (aquele que recebe estranhos em sua casa). Do mesmo radical vieram, via “hospitus”, os termos “hóspede” e “hospitalidade”, e “hóstia” (simbolicamente, o objeto que recebe em si um espírito estranho, algo que vem de outro mundo).

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