segunda-feira, 4 de janeiro de 2010

1477) “Viver a Vida” (7.12.2007)


Jean-Luc Godard e seus fumantes compulsivos, que acendem um cigarro no início de cada take. Como se fumava naquele tempo! E é curioso constatar que na França “aquele tempo” ainda é hoje, porque os franceses, nacionalistas como eles só, consideram que as campanhas anti-fumo são uma invasão dos EUA na sua liberdade individual, e preferem continuar fumando, e morrer de câncer. (Curiosamente, não me consta que os franceses tenham considerado a propaganda americana pró-cigarro, inclusive no cinema, uma invasão na sua liberdade individual).

Neste filme de 1962, Godard segue Anna Karina (de cabelo curto, com aquela virgulazinha às avessas junto à orelha) ao longo de uma Paris em todas as nuances do preto, do branco e do cinza, como só o fotógrafo Raoul Coutard soube inventar. O filme se inicia com um diálogo entre Nana e um de seus namorados, no balcão de um bistrô. Os dois estão de costas. Vemos apenas o cabelo de cada um, por trás, quando falam. Diz Godard: “Para que o público não se distraia com seus rostos, e preste atenção no que dizem.” Claro que o efeito é o inverso – a gente se concentra nos cabelos, e esquece os diálogos. Mas isto prova como Godard sabia mudar de posição o zero-cartesiano do cinema.

Viver a Vida é a história de uma prostituta, e há uma seqüência bela e cruel em que uma voz masculina recita burocraticamente os direitos e os deveres de uma prostituta francesa, citando a Constituição a cada passo, enquanto um clip de imagens nos mostra Nana e dezenas de homens anônimos num balé de quarto de hotel, despindo-se, beijando-se, conversando as banalidades de praxe, queixando-se do hotel (faltam cinzeiros, faltam cadeiras), e fumando o tempo todo. No final, Nana é envolvida numa disputa de gangues e é morta a tiros na rua. Ela cai. O assassino entra no carro, dá a partida. A câmera corrige para mostrar Nana caída no asfalto. Surge uma tela preta com o nome: “FIM”. Nessa fase inicial, os filmes de Godard terminavam sempre assim, rudemente, bruscamente, sem movimento de câmara mostrando o horizonte, sem violinos, sem fade-out, sem nada. Terminavam de repente, como a vida termina.

Há uma bela seqüência em que um dos “namorados” de Nana lê para ela o conto de Poe “O Retrato Oval”, em que um artista pinta o retrato de sua esposa doente e acaba transferindo para o quadro a vida dela, que morre quando o retrato perfeito é concluído. A câmara fica voltada para Nana, e mostra na parede, por trás dela, uma foto de Liz Taylor. Retrato e modelo, ficção e realidade, se misturam, porque Godard e Karina eram casados na época, e pode-se dizer que ele sugou dela toda a beleza de seu corpo físico, para criar na tela algumas das mais despojadas imagens da beleza feminina, com uma secura nada hollywoodiana. Como disse David Thomson: “Foi a descoberta de que ele amava Karina mais nas imagens em movimento do que na vida real que deve ter destruído seu casamento”.

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