Pense num dia problemático! Nunca fui bom para escolher presentes, ainda mais para a Marquesa, como se auto-intitulava Dona Cleuza (que vários leitores desta coluna conheceram pessoalmente). Não que ela fosse complicada. Num dia como hoje, bastaria estarmos os dois, no fim da tarde, tomando café a sós na mesa da cozinha, como fizemos milhares de vezes, e bastaria que eu pegasse uma bolacha creme-craque e a estendesse para ela: “Ah, sim, quase me esqueço, tá aqui seu presente do Dia das Mães”. Ela encheria os olhos de lágrimas, empurraria a cadeira para trás, daria a volta à mesa e apertaria minha cabeça junto ao seu peito, dizendo, “Ô meu filho lindo... ô meu santo...” Era assim.
Um livro? Talvez. Algum capa-e-espada de Michel Zevaco, que líamos tanto, lá na casa da Miguel Couto; alguma aventura de Arsène Lupin... Ou quem sabe eu encontrasse uma edição antiga de Jean Christophe, um livro que ela endeusava e que nunca cheguei a ler. Depois que virou espírita, ela se concentrou em Chico Xavier, Divaldo Franco... Vivia me aconselhando um livro chamado Os Exilados de Capela, mistura de discos voadores e kardecismo, e eu argumentava: “Mãe, pelo amor de Deus, isso não tem a menor base científica...” Ela dava uma rabissaca e dizia: “Deixa pra lá. Você é cético.”
Uma jóia, um perfume? No tempo em que ela usava isto, eu era pequeno demais para comprar. Teria oito, dez anos, e olhava ela se aprontando para alguma ocasião elegante. Lembro o cheiro do perfume, o contraste violento entre os cabelos negros e a boca pintada de vermelho. Lembro as jóias; um broche de esmeraldas (que celebrei num poema), um bracelete dourado que eu sempre pensei ser de ouro maciço.
Podia ser um disco. Aí não havia dúvida: Nelson Gonçalves, Altemar Dutra, Anísio Silva, o onipresente Roberto Carlos... A Marquesa adorava cantar. Adorava falar. Caririzeira (de Coxixola) até a medula, era quase uma “mamma” italiana, exuberante, barroca. Sua vida pessoal e seus sentimentos mais íntimos forneciam o teor de um monólogo a plenos pulmões que se estendia por manhãs e tardes inteiras, enquanto ela varria a casa, arrumava, fazia o almoço, lavava e estendia roupa, sempre à frente da empregada, a quem cabia apenas finalizar as tarefas.
Eu poderia dar-lhe hoje uma efígie (mais uma!) do Padre Cícero, ou um filhote de gato (mais um!) para ser criado e paparicado. Podia dar-lhe um livro de receitas, um livro de costura, um livro de bordados, para que ela passasse noites inteiras com os óculos cavalgando o nariz, destrinchando aquelas (para mim) álgebras incompreensíveis com a curiosidade de uma criança e o crivo exigente de um cientista. Podia dar-lhe qualquer coisa: uma flor, um rapa-coco, uma tartaruga (mais uma!), uma poncheira, uma sandália havaiana, dois fios do meu cabelo (um preto, outro branco). Pois é, tantas opções de presente e eu sem nada para lhe dar, tendo apenas as mãos vazias de quem durante a vida inteira só fez receber.