Dez anos atrás falecia o escritor João Antonio, e acaba de sair um volume, mistura de biografia e coletânea de cartas, organizado por seu amigo e correspondente Mylton Severiano, Paixão de João Antonio (Ed. Casa Amarela). Outra recolha de cartas é Cartas aos amigos Caio Porfírio Carneiro e Fábio Lucas (Ateliê Editorial & Oficina do Livro), e a editora Cosac & Naify está relançando sua obra. Parco consolo para um sujeito que foi sempre do contra, que gostava de bradar impropérios contra a pseudo-intelectualidade pequeno-burguesa (não sei se usava este termo, mas a intenção era esta) e que morreu em dolorosa solidão (morava sozinho, e seu corpo só foi descoberto quando arrombaram o apartamento três semanas depois).
Na década de 1970, três livros de João Antonio caíram como bombas no meu colo: Leão de Chácara, Malhação do Judas Carioca e Malagueta, Perus e Bacanaço (este um relançamento, tendo surgido em 1963). João Antonio era uma mistura de repórter, malandro, escritor de mesa de bar e etnógrafo involuntário da marginália urbana paulistana/carioca. Seu habitat e seu campo de pesquisa eram as sinucas, os botequins, os prostíbulos, as casas de cômodos, os cortiços, as oficinas mecânicas, as buates de strip-tease, os inferninhos, os conjuntos habitacionais populares, as praças de camelôs. Um Brasil que viceja e floresce ao ar livre e à luz do sol, mas mesmo assim subterrâneo e clandestino. Um país onde as exceções superlotam as calçadas enquanto os raros exemplares da regra passam de carro blindado e com vidro fumê.
João Antonio registrava o “slang” e o “argot” da nossa marginália, e uso estes termos para não incomodar os ouvidos delicados dos leitores de François Villon, Kerouac, Céline ou Henry Miller. Sua obra foi uma imersão existencial e lingüística nessa panela borbulhante de vigaristas, gigolôs, comerciárias, traficantes, cartomantes, X-noves, operários, desocupados, golpistas e otários. Lembro que uma vez viajei de ônibus de Campina para Recife lendo um de seus livros. Ao saltar, na Rodoviária velha, fui caminhando até a Conde da Boa Vista, onde tinha um encontro não sei com quem. Ziguezagueando pelas ruas estreitas e repletas em torno do Mercado São José, tive uma espécie de iluminação mística, como se a experiência de ler João Antonio tivesse subitamente me teleportado para o universo paralelo que ele descrevia tão bem. Nunca a existência do Brasil me pareceu tão real.
O escritor era meio atrabiliário, farrista, brigão, indispunha-se com Deus e o mundo, teve problemas com os críticos e com as editoras, e se bem me lembro um de seus últimos livros intitulava-se Abraçado ao meu rancor. Foi um preço que pagou pelo direito de abrir o ventre do Brasil, olhar o que tinha lá dentro, e mostrar a quem tivesse coragem de olhar também. Tomara que hoje esteja em paz, porque como dizia Riobaldo, “esta vida, às não-vezes, é terrível bonita, horrorosamente, esta vida é grande”.