segunda-feira, 7 de dezembro de 2009

1407) Mas as coisas findas (16.9.2007)






(NOTA: estes quatro artigos devem ser lidos na ordem em que foram escritos: 1404 - 1405 - 1406 - 1407).




O poema “Memória” de Carlos Drummond de Andrade (no livro Claro Enigma) se encerra com esta singela estrofezinha: 

Mas as coisas findas 
muito mais que lindas 
estas ficarão. 

É uma estrofe perfeita, em todos os sentidos, para fechar este poema sobre a perda e a ausência. 

Como falei no primeiro comentário, o poema tem quatro estrofes, cada estrofe três linhas, cada linha cinco sílabas. A contagem das sílabas métricas varia de leitor para leitor; eu as leio assim: 

Amar o perdido (2-3) 
deixa confundido (1-4) 
este coração (1-4). 

Nada pode o olvido (3-2) 
contra o sem sentido (1-4) 
apelo do Não (2-3). 

As coisas tangíveis (2-3) 
tornam-se insensíveis (1-4) 
à palma da mão (2-3). 

Mas as coisas findas (3-2) 
muito mais que lindas (3-2) 
essas ficarão (3-2). 

A leitura métrica da última linha (que teoricamente seria 1-4, “es – sasficarão”) vira “essasfi-carão”, claramente influenciada pela das duas linhas anteriores, o que não ocorre com a última linha da segunda estrofe, quando isto forçaria um cacófato (“apelu-donão”).

É um poema minúsculo e de grande simetria, mesmo admitindo as variações de ritmo descritas acima. 

A simetria é reforçada pela reiteração de rimas toantes centradas na vogal “I” nas linhas 1 e 2 de cada estrofe, e na sonoríssima rima em “ÃO” nas terceiras linhas. 

(Se eu fosse escrever um Decálogo para jovens poetas eu incluiria: “Economize a rima em “ÃO”, a qual, como as armas de fogo, só deve ser usada em casos de absoluta necessidade”).

O poeta fala da perda daquilo que foi amado, mas se consola dizendo que existe algo mais importante do que as coisas lindas: são as coisas findas. “Findas” significa encerradas, terminadas. As coisas que acabaram, ficarão. 

Vejam que belo paradoxo! Nossa sensação intuitiva é de que se essas coisas se acabaram, não ficaram. Drummond sugere o contrário. As coisas findas ficarão porque provavelmente se cristalizaram, despregaram-se da realidade (que é fluxo, transformação, incerteza) e tornaram-se Forma, Idéia – tornaram-se Memória. 

Vejam com que segurança o poeta usa este termo no futuro, “ficarão”. Me lembra o que disse Mário Quintana: 

Esses que aí estão 
atravancando meu caminho 
eles passarão 
eu passarinho. 

É como se dissesse: “eles passarão, eu ficarei”.

Que passarinho é este que fica? Maldo eu que seja o rouxinol cantado celebremente pelo inglês John Keats, no poema “Ode To a Nightingale”, que examino no capítulo “S” do meu ABC de Ariano Suassuna (e que examinei em maior detalhe nesta coluna: “A eternidade dos pássaros”, 8.9.2004). 

É o pássaro imortal que canta o mesmo canto por toda a eternidade. É a memória, que preserva em seu âmbar as coisas findas. 

Que na ficção científica foi assim definida por Frank Herbert (Duna): “Arrakis ensina a mentalidade da faca: cortar aquilo que está incompleto e dizer – Agora está completo porque termina aqui”.







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