segunda-feira, 7 de dezembro de 2009

1406) As coisas tangíveis (15.9.2007)





A terceira estrofe do poema de Drummond, “Memória”, diz assim: 

As coisas tangíveis 
tornam-se insensíveis 
à palma da mão. 

Sendo um poema sobre a perda amorosa, a primeira leitura destes versos refere-se à ausência – nossa mão, que antes sentia a presença de algo concreto, tocável, tangível, não a sente mais. 

Vejo uma sutileza curiosa no uso desta imagem da “palma da mão”. Porque me parece que o ato de tocar, experimentar, acariciar algo se dá primeiro pelas pontas dos dedos, que funcionam para nós como as antenas de alguns insetos. O tato que temos nas pontas dos dedos é muito mais refinado e mais reconhecedor de diferenças do que a palma da nossa mão. 

Por que a palma da mão? Porque ela serve, mais do que para tocar, para reter. Para estabelecer a posse. Na informalidade dos bate-papos amorosos vangloriamo-nos dizendo: “Fulana tá aqui, olha, na minha mão” – e estendemos a palma para reforçar. Se algo não pode mais ser sentido na palma da nossa mão, não nos pertence mais.

Essa imagem me lembra os versos de outro poema do mesmo livro (Claro Enigma), o belíssimo “Campo de Flores”, onde o poeta diz: 

Seu grão de angústia amor já me oferece 
na mão esquerda. 
Enquanto a outra acaricia 
os cabelos e a voz e o passo e a arquitetura 
e o mistério que além faz os seres preciosos 
à visão extasiada. 

Esta imagem da mão acariciante me evoca os versos sensuais de Bob Dylan em “I Threw it All Away” (“Eu Joguei Tudo Fora”), canção de 1969: 

Um dia eu tive montanhas na palma da minha mão 
e rios que fluíam o dia inteiro... 

E vejam com que delicadeza Drummond passa da mera posse física para a posse em seu sentido mais pleno, a posse da pessoa total e de tudo que ela inclui, ao dizer que a mão não acaricia apenas os “cabelos”, mas também a “voz”, o “passo”, a “arquitetura”...

E tem mais. Observem o duplo sentido da palavra “insensível”. Insensível é aquilo que não sente (“você é uma pessoa insensível”), e também aquilo que não pode ser sentido, imperceptível (“houve uma mudança insensível de temperatura”). 

Portanto, as coisas que antes eram tocadas com as mãos já não são sentidas – nem sentem. A ausência, como a presença, é um fenômeno recíproco. Tudo que toca é tocado. Toda mão que acaricia é também acariciada no mesmo gesto. E tudo que não podemos sentir também não nos sente.

É como a reciprocidade da dor, registrada em outro poema do mesmo livro, “A Um Varão, Que Acaba de Nascer”: 

Este é de resto o mal 
superior a todos: 
a todos como a tudo 
estamos presos. E 
se tentas arrancar 
o espinho de teu flanco, 
a dor em ti rebate 
a do espinho arrancado. 

Quando a ausência se instaura, não existe mais sofrimento mútuo nem prazer mútuo: apenas a falta de contato entre duas “coisas” que, mesmo tangíveis, mesmo possíveis de alcançar com a mão, não se sentem mais uma à outra. Amanhã comentarei a última estrofe.



Estrofe 4: 
http://mundofantasmo.blogspot.com.br/2009/12/1407-mas-as-coisas-findas-1692007.html


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