Uma matéria saída no jornal londrino “The Observer” informa que o abutre está se tornando uma espécie em extinção em alguns países da África e da Ásia. As razões variam. No sul da Ásia, nos últimos anos, o gado tem sido tratado com um analgésico chamado Diclofenac. Não faz nenhum mal ao gado, mas é mortal para os rins dos abutres que se alimentam dele. Três espécies de abutres já estão quase extintas, e duas outras estão reduzidas a algumas dezenas de indivíduos. Já na África do Sul o motivo é diferente. Existe uma crença popular de que a carne do abutre dá poderes de prever o futuro, e as pessoas que apostam na loteria nacional estão “dando uma baixa” na população das aves.
São duas situações diferentes que têm conseqüências parecidas. A rigor não existe nada contra os abutres em si. Ninguém está tentando extinguir a espécie, ou persegui-la. Ninguém sabia que o Diclofenac não fazia bem a eles; a intenção era apenas cuidar bem do gado. Se o efeito colateral disto é diminuir a população de abutres, os fazendeiros dão de ombros e dizem: “E daí? Problema deles”. Já o pessoal sul-africano persegue os abutres, não por raiva ou medo, mas por admiração mística. Como as aves têm uma visão fantástica, comparável à da águia, isto passa para as pessoas a impressão de que eles conseguem também avistar o futuro, e de que esse dom pode ser absorvido através da carne. Na África Ocidental, a população de abutres já caiu 95%. Problema deles.
Os elefantes correram o mesmo risco de extinção por causa do simples marfim. Mas uma coisa é procurar uma substância valorizada no mercado por causa de suas propriedades decorativas, como é o caso do marfim, e outra coisa é projetar nos animais uma qualidade mágica qualquer. Houve um tempo em que os rinocerontes foram ameaçados de extinção porque se dizia que chifre de rinoceronte pulverizado era afrodisíaco. É o mesmo caso agora da carne dos abutres sendo vista como garantia de clarividência.
Num livro de ficção científica de Thomas M. Disch, Os Genocidas, a Terra é invadida por alienígenas superpoderosos que pretendem utilizar nossos continentes para algum tipo de cultura – plantar o equivalente a soja ou algodão lá na economia deles. Para isso, eles primeiro têm que “limpar” o terreno com pesticidas, e é aí que entramos nós, porque somos a peste que eles pretendem extinguir. Não é nada de pessoal contra nossa espécie, inclusive eles nem se dão ao trabalho de estabelecer contato. Assim como nós não nos preocupamos em fazer contato com os gafanhotos sobre os quais espalhamos nuvens de pesticida.
A metáfora de Disch, típica dos anos 1960, é de que a Humanidade não precisa necessariamente temer inimigos alienígenas que tenham divergências políticas conosco e queiram nos invadir. Eles podem querer nos destruir, não por inimizade, mas porque somos aos seus olhos uma sub-raça, uma praga daninha ou uma espécie descartável como nós mesmos consideramos os abutres.
A crença de que comer carne de abutre pode descortinar o futuro não é nova nem exclusivamente africana. Era uma crença comum, por exemplo, no Portugal medieval. Há um trecho de uma cantiga de escárnio, não lembro agora o autor, que diz algo como "avuitor comestes que adivinhades". Pergunto-me se é uma crença antiga, de alguma forma comum às duas culturas ou se poderia ser algum tipo de contaminação cultural. Não imaginava que ainda fosse uma crença viva.
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