sexta-feira, 2 de outubro de 2009

1286) O mistério do Mary Celeste (27.4.2007)



Sou um “gourmet” de mistérios, ou seja, sou capaz não apenas de saboreá-los como também de comparar receitas, detectar influências e sugerir aperfeiçoamentos. Um mistério recente foi referido pela imprensa como um “novo Mary Celeste”, um dos mistérios insolúveis do século 19. Descreverei o básico; quem quiser mais detalhes veja aqui:


O Mary Celeste é um navio que em 1872 foi encontrado vagando à deriva na costa de Portugal. Ninguém estava a bordo: nem o capitão (que levava consigo a esposa e a filha) nem os sete tripulantes. Tudo estava aparentemente intacto; havia comida e água, não havia sinais de luta ou de abordagem por piratas ou algo parecido. Apenas um barco salva-vidas estava faltando. 

Há numerosas teorias para explicar o sumiço das dez pessoas, algumas bastante práticas e plausíveis, outras envolvendo (como é inevitável) a abdução por alienígenas. Uma bem interessante (talvez a primeira que li) é o conto de Conan Doyle, “A História de J. Habakuk Jephson”. 

Dias atrás, um catamarã de 12 metros de comprimento foi encontrado na costa da Austrália. Seus três tripulantes estavam desaparecidos. Tudo no interior do barco parecia normal: coletes salva-vidas e equipamento de emergência estavam no lugar, o motor estava funcionando, havia comida servida sobre a mesa, e até um laptop estava ligado. Mas, cadê o pessoal? 

Em geral, as explicações mais simples são as que se revelam verdadeiras. Um dos tripulantes (que tinham 59, 63 e 69 anos) pode ter caído no mar e os outros dois pularam no bote para resgatá-lo; como o mar estava agitado, nenhum se salvou. 

Mas situações assim mexem com o nosso inconsciente, com a nossa fascinação angustiada diante de situações em que tudo parece normal mas existe um vazio aterrador no centro, uma falta, uma ausência. A ausência inexplicável do Humano num contexto que deveria estar totalmente povoado de humanos (um navio abandonado, um prédio evacuado, uma cidade fantasma) é uma das imagens mais poderosas da Morte. 

Quando morre alguém que nos é muito próximo, temos que nos acostumar não com uma ausência, mas com milhares. Temos que olhar para o sofá onde aquela pessoa sentava e vê-lo vazio pela primeira vez, e para sempre. Em vez de sentir a ausência de uma vez só, passamos a senti-la como uma sucessão de ausências específicas, personalizadas. Não está mais dormindo no quarto. Não está mais à janela. Não está mais lendo jornal no terraço. Não está mais tomando café à mesa. Não está mais chegando do trabalho e entrando pela porta. 

Serão dezenas, centenas de “pessoas” ausentes de um ambiente que, afora essa “multidão de desaparecidos”, parece normal, parece estar funcionando, com tudo aceso e ligado, ainda que vagando um pouco à deriva. O mistério do Mary Celeste é o mistério de como é possível que o mundo inteiro continue existindo e funcionando depois que morre alguém.







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