sábado, 29 de agosto de 2009

1225) A Utopia e o Apocalipse (15.2.2007)




(Eduardo Galeano)

Uma vez vi um comandante de navio explicando a dificuldade de manobrar um daqueles petroleiros que cruzam os oceanos: “Por ser um navio muito pesado, ele responde muito lentamente ao freio, e só pára de fato 10km depois. Portanto, se a gente avistar um iceberg a 9km, não tem mais jeito a dar: já bateu. É só ficar esperando, e rezar”. 

Não sei se ele falou em rezar; escapou-me agora, no instante da digitação, como nos escapa pelos dedos a maior parte dos clichês que trazemos na mente e que jamais seriam aprovados pela censura estética da nossa consciência. 

Mas o fato é que em momentos assim, com um iceberg 9 quilômetros à frente, nossos dedos reagem de moto próprio. Indicador e médio cruzam-se dentro do bolso da calça, para que ninguém nos veja regredindo à superstição. Ou então fazemos o sinal-da-cruz, ou batemos na madeira fingindo que estamos tamborilando os dedos, despreocupados. 

Primeira lição a extrair disso: quer saber o que o Inconsciente de um sujeito está pensando, olhe para o que fazem os seus dedos.

Todo este papo de cerca-lourenço do parágrafo anterior é sintomático do sujeito que sabe que tem uma coisa desagradável para dizer e fica enrolando, falando em redor, com medo de se aproximar do centro. Mas nove quilômetros passam rápido, e aqui chegamos. 

Todos os leitores devem ter sabido do relatório ambiental divulgado dias atrás por uma equipe internacional de cientistas. O recado que eles nos dão sobre o aquecimento global pode ser resumido mais ou menos assim: aconteceu algo de terrível com o planeta. Não pode mais ser evitado; já aconteceu, e por culpa nossa. Tudo que podemos fazer agora é preparar o mundo para as conseqüências, que só virão, aos poucos, durante as próximas décadas. 

Ou seja, o navio já bateu, e os pilotos que podiam tê-lo desviado não o fizeram. Coloquem os salva-vidas. Os que ainda não sabem nadar podem se matricular no curso de natação a ser ministrado na piscina do convés.

A consciência de um Apocalipse pode ser estranhamente reveladora para o ser humano. Tem gente que só se mexe quando sabe que aconteceu uma catástrofe. O Apocalipse tem o efeito inverso da Utopia. O escritor Eduardo Galeano afirmou certa vez: “A Utopia está no horizonte. Aproximo-me dois passos, ela afasta-se dois passos. Caminho dez passos e o horizonte afasta-se dez passos. Por muito que caminhe, nunca a alcançarei. Para que serve a Utopia? Para isto: serve para caminhar”. 

Um Apocalipse anunciado, uma tragédia que se anuncia para o futuro, pode ter um efeito semelhante. Dá tempo para o mundo inteiro se preparar. Ninguém pode se queixar de estar sendo colhido de surpresa. A ficção científica, por exemplo, vem anunciando essas catástrofes ambientais desde os anos 1960. 

Para que servem o Aquecimento Global, o Degelo dos Polos, a Invasão dos Oceanos, a Submersão das Cidades Litorâneas? Para isto: serve para caminhar. Não precisam preocupar-se com você mesmos; mas preparem seus filhos.






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