domingo, 9 de agosto de 2009

1189) Desnegação (4.1.2007)


(imagem: Duvet)

Andei comentando aqui (“Penumbras do Idioma”, 28 de setembro; “Três lapsos da língua”, 7 de outubro; “A linguagem dos sonhos”, 13 de outubro) o processo como o Inconsciente forma suas imagens, pegando aspectos contraditórios e fundindo-os num único conceito. Freud estudou isto, inclusive, na formação de idiomas antigos, onde existem palavras formadas por dois antônimos que exprimem uma única idéia.

Todas as línguas têm esta aparente contradição, que às vezes é resolvida pelo tom de voz ou pela linguagem gestual. Usamos “pois não” para concordar com algo ou conceder um pedido; e usamos “pois sim!” para manifestar nossa discordância ou incredulidade. Um estrangeiro costuma se desorientar um pouco com isto. Para nós, em ambos os casos, o conteúdo manifesto da frase é subjugado pela força do “jeito de dizer”, que é quem define.

No relacionamento entre o Real e o Fantástico ocorre algo parecido: a união de opostos. André Breton afirmava que existe uma região da mente em que contrários como Vida e Morte, Real e Fantástico, Corpo e Mente, deixam de ser percebidos como contraditórios, e que é nessa região que o Surrealismo pode florescer. Muitos estados psicóticos têm nessas contradições um dos seus sintomas mais insistentes. Experiências alucinógenas, experiências místicas, técnicas de meditação: tudo isto acaba, cedo ou tarde, interferindo neste ponto do nosso software conceitual. Quando nossa mente se liberta momentaneamente das regras da razão e da lógica, percebe como idênticas certas coisas que parecem ser opostas. Tem gente que não suporta esta experiência e endoidece. Tem gente que agüenta o tranco e passa a ver o mundo com mais jogo-de-cintura.

A literatura fantástica faz o mesmo. O primeiro título que Bram Stoker pensou para seu romance Drácula foi “The Dead Undead” (“O Morto Não-morto”). Mary Shelley, autora de Frankenstein, tem outro romance fantástico intitulado “The Mortal Immortal”. E assim por diante. O Fantástico é a possibilidade de considerar como real um fato contraditório, impossível, a junção de duas coisas que não podem ser consideradas em conjunto. Algo que é homem e animal. Algo que está ausente mas está presente. Algo que já aconteceu mas está acontecendo e novo. E assim por diante.

Isto faz nossa mente fugir à Ditadura da Tautologia, a qual nos diz, por exemplo, que um clip serve apenas para prender folhas de papel e em hipótese alguma pode ser usado para rasgar o celofane de um CD, ou que um vaso de flores não pode ser usado para nocautear um assaltante. Ora, as coisas são o que são, mas nem por isto são apenas isto. Histórias de fantasmas, por exemplo, fazem os mortos aparecerem impossivelmente no mundo real. E com isto revelam o fato inconteste de que eles aparecem o tempo inteiro em nossas mentes, com a mesma assiduidade das pessoas ainda vivas. São os mortos não-mortos, são corpos que viraram imagens, são fatos que viraram histórias, e são tão reais quanto nós.

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