sexta-feira, 17 de julho de 2009

1158) Ninguém é universal (29.11.2006)




(Orhan Pamuk)

Comentei há algum tempo essa mania de dizerem que a literatura de Machado de Assis é universal, enquanto a de autores como Zé Lins do Rêgo não é. 

O que querem dizer com este “universal”? Que ela exprime sentimentos ou idéias que não são apenas do Rio de Janeiro onde Machado vivia, mas podem ser compreendidos por toda a Humanidade? 

Sem desmerecer Machado, não creio que a literatura dele fosse unanimidade entre camponeses africanos ou servo-croatas (cultos, alfabetizados, etc.). Não digo que a compreensão e a fruição profunda dessa literatura fossem impossíveis a essas pessoas. Afirmo apenas que não são unânimes, infalíveis, obrigatórias. Ninguém é “universal”. Ninguém.

Maldo eu que essa pretensão a universalismo vem daqueles para quem “o universo é a minha aldeia”. O recém-ganhador do Prêmio Nobel, o escritor turco Orhan Pamuk, queixou-se disto há pouco numa entrevista ao “Globo”: 

“As pessoas consideram muitas das coisas escritas pelos europeus como universais, mas às vezes são apenas ocidentais. (...) Se você é um escritor turco e escreve sobre o amor, as pessoas dizem que é sobre o amor na Turquia. Se Proust escreve sobre o amor, ele está escrevendo sobre o amor universal. Esse tratamento realmente me irrita, mas talvez, agora, esteja mudando”. 

O imenso etnocentrismo denunciado aqui por Pamuk é a cara da cultura ocidental, e não vem de agora, vem do Renascimento, do descobrimento da América, dos imperialismos culturais europeus, cujo espaço foi ocupado no século 20 pelo imperialismo cultural norte-americano e agora pelo multinacional-corporativo.

Globalização é, em parte, isto: afirmar que o que é nosso é universal, e o que é do vizinho ao lado é meramente regional e exótico. 

Não existe cultura “universal”, existe cultura imposta militarmente e economicamente. 

Falamos um idioma filho do latim, não porque o latim seja universal, mas porque foi imposto à força das armas. Arranhamos inglês hoje em dia porque ele é imposto pelo mundo das finanças, da indústria cultural e das telecomunicações.

Chamamos de universal aqui que parece conosco, e se temos poder de imposição suficiente, conseguiremos convencer o mundo de que estamos certos. 

Bruce Sterling, um escritor de ficção científica capaz de escrever sobre qualquer questão política e tecnológica de qualquer região do mundo, ironiza a literatura “universal” praticada nos EUA dizendo que ela não passa de romances sobre professores de meia-idade bebericando vinho e pensando em trair a esposa. 

Não está muito longe do “universalismo” de Machado, que era, na minha modesta opinião, um escritor regional cujo universo ia do Andaraí a Botafogo. Seria mau escritor, por isto? De jeito nenhum. É o que nossa literatura produziu de melhor, e suas façanhas literárias são ainda mais notáveis quando consideramos a quantidade de leite que ele conseguiu extrair dessa minúscula pedra temática sobre a qual preferiu debruçar-se.




Um comentário:

  1. Aliás, o universo de Machado não precisou nem atravessar Mata-Cavalos, hoje no Riachuelo, onde logo ali ao lado tem uma trupi muito talentosa contando um causo sobre o Reino do Sol. Certeza que Machado desprezaria o "perfume do sândalo" desse tal de universalismo unilateral. Parabéns e caloroso abraço, Téo Lorent

    ResponderExcluir