Visitando os sótãos empoeirados da literatura paraibana, achei este romance de Carlos Dias Fernandes, escritor cuja fama fugaz se evaporou na Modernidade. O livro, de 1936, teve uma reedição recente pela Secretaria de Educação do Estado e Edigraf. Fretana é o apelido de Frederico Pestana, poeta e charadista cuja vida é uma cópia da biografia do autor: o nascimento e a infância em Mamanguape, a adolescência no Recife, os estudos de farmácia, a breve passagem pelo Exército, e depois as longas décadas de atividade no jornalismo, na literatura e na política. O romance semi-autobiográfico é o mais cômodo dos gêneros literários. Possibilita ao autor recorrer à memória quando a imaginação está com pouco gás, e recorrer à imaginação quando a memória lhe falha, ou (o que é mais freqüente) quando ele não resiste à tentação borgiana de modificar o Passado.
Carlos Dias Fernandes foi um dos poetas, hoje esquecidos, que marcaram minha infância. Meu pai costuma recitar nas noitadas boêmias seu poema “Miriam”, a história de uma escrava cristã que tem um caso de amor com Pôncio Pilatos. Quando Pilatos avisa que vai casar, por conveniência política, com uma dama, ela se desespera: “Pilatos, meu amor, por onde quer que os destinos / te levem, seguir-te-ão meus olhos peregrinos / como dois cães fiéis... Toda minh’alma é tua. / Todo este coração, que em ânsias tumultua / é teu, vive por ti, por ti se despedaça...” Pilatos explica para ela, na maior cara de pau, que vai ter que deixá-la porque não pode perder aquela chance de ascensão profissional. Miriam, humilde, pergunta-lhe: “E essa mulher, que te despreza – é linda?” E ele: “Linda? Que dizes tu? Divinamente bela! / Tão pulcra, Miriam, que te desprezo por ela, / por minha Cláudia, a flor das patrícias romanas...” Miriam retruca: “Basta! Por Jeová! Que palavras tiranas! / Mas sofrendo-as por ti, deleita-me sofrê-las...”
Perdoem-me os possíveis erros de transcrição; nunca li o livro, e estou citando de memória. Carlos Dias Fernandes era um escritor preciosista, à moda de Coelho Neto. Cada frase sua era ornada com a exuberância de um capitel coríntio. Foi amigo de Cruz e Souza (episódio reconstituído em Fretana). Redigiu epigramas e poemas satíricos, as cantigas-de-escárnio-e-maldizer tão cultivadas pelos poetas de cem anos atrás, quando os literatos viviam com um pé na política. O capítulo XX do livro é um pequeno “roman à clef”, previsivelmente partidário, sobre a Revolução de 1930 na Paraíba (chamada de “Microlândia”), onde “Protásio e Jayme Villoa” são respectivamente Epitácio e João Pessoa, o “Coronel Júlio Cerejeira” é José Pereira, “Sotero Veiga” é João Dantas, e assim por diante. Fretana, ainda legível sem esforço, é um livro em que o preciosismo do estilo não dilui a observação vívida do ambiente social, nem o retrato de pequenos personagens secundários que, extraídos da memória, têm ao mesmo tempo o colorido da imaginação e o cheiro da verdade.
Você sabe onde encontraria algum exemplar desse livro?
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