terça-feira, 23 de junho de 2009

1117) A linguagem dos sonhos (13.10.2006)




A afirmativa de Sigmund Freud de que a linguagem dos sonhos funde numa mesma imagem objetos contraditórios, é facilmente comprovada. Sempre que alguém conta um sonho, diz coisas como: 

“Eu estava na minha casa, só que minha casa era um navio. Aí chegava minha tia Florisbela, que vinha passar uns dias. A gente começava a arrumar um lugar onde ela pudesse dormir, na sala. Enquanto arrastávamos os móveis para abrir espaço ela me dizia que ia ficar apenas uma semana, mas aí já não era Tia Florisbela, era Madre Teresa de Calcutá”. Ou coisa parecida.

Uma característica do pensamento onírico (e agora estou falando por conta própria, não sei se o Dr. Freud concordaria) é que ele muda de idéia o tempo todo. Nossa mente sonhante começa a dizer uma coisa mas aí pensa melhor e a substitui por outra. 

Há quem ache que isto é feito pela nossa rememoração, depois de acordar; eu acho que ocorre durante o próprio sonho.

Essas substituições absurdas e inesperadas se parecem muito com os processos de idas e vindas durante o trabalho criativo da ficção. Quando temos uma idéia para escrever uma história, essas mudanças são freqüentes: 

“Já sei. Vou escrever um cordel sobre um casal que tem três filhos. Não, três filhos homens é muito clichê. Vou dizer que são três mulheres! Aí todas três têm um sonho que precisam ir num reino distante. A filha mais velha parte, mas aí se perde no caminho e fica presa numa caverna. Não, melhor dizer que ela cai num poço. Aí a segunda filha sai, e é presa por um feiticeiro. Ou melhor: ela é enfeitiçada por ele, mas não percebe. Aí a filha mais nova sai e no caminho encontra três pássaros que querem ajudá-la. Ou melhor: um pássaro, um sapo e um peixe”.

Já falei aqui do estudo de Freud sobre palavras iguais que significam coisas opostas. Isto mostra o quanto a linguagem onírica é literária. Me traz a mente uma frase de Machado de Assis, ao descrever uma mulher já madura: “Uma senhora que ornara os salões do primeiro reinado, e não desornava então os do segundo”. 

Toda a força do trecho reside nesta palavra com dupla negação, à primeira vista desnecessária. Ele poderia dizer: “Ornara os salões do primeiro reinado, e ornava então os do segundo”. Mas reconhece implicitamente que a beleza da dama acusou a passagem do tempo; já não orna tanto quanto antes. Mas ao mesmo tempo se corrige: ora que diabo, já não é mais tão bela, mas também não é feia! Não desorna! 

E esta dupla negação, de braço dado com esse verbo um tanto raro (mesmo dicionarizado, o verbo “desornar” não é de uso corrente) são os sintomas visíveis do processo interno de dúvidas, recuos e auto-correções do autor à medida que a pena corre no papel. Ele vai caminhando, recua um passo, avança dois... 

O resultado é uma palavra pouco comum, resultado de sucessivas interferências. Palavra que é sintoma do vai-e-volta da mente que a gerou, exatamente como as imagens de um sonho.







Nenhum comentário:

Postar um comentário