sábado, 7 de março de 2009

0868) Lumière (28.12.2005)


(foto de Henwar Rodakiewicz)

Deus disse: “Que seja feita a Luz”, e em 28 de dezembro de 1895 surgiram em Paris os irmãos Lumière. Reconheço, contudo, que há uma certa injustiça em fazer repousar toda a essência do Cosmos nesta única palavra, uma vez que na arte do Cinema as sombras são de igual importância. É como na literatura: de que nos adiantaria um livro, se as letras e a página fossem todas da mesma cor? O Cinema é a arte de modular claros e escuros e o modo como eles se misturam e se movem, o modo como tudo aquilo se comporta dentro das quatro linhas, o modo como essa moldura retangular se move à nossa frente, janela flutuante, mostrando-nos vistas sempre renovadas desse universo-além que ela reinventa a cada segundo.

Um cinéfilo é alguém (homem ou mulher) que descobre em si um olhar novo em cada filme. O olhar do político que chega diante do microfone e vê um milhão de pessoas acotovelando-se na praça. O olhar de uma mãe contemplando seu bebê adormecido. O olhar do rapaz deitado na cama vendo a namorada despir-se. O olhar do general vendo a tropa desfilar armada até os dentes. O olhar da criança que pela primeira vez é admitida, com recomendações, a um ritual privativo dos adultos. O olhar do estrangeiro que fuma de noite à janela e observa a cidade onde não conhece ninguém. O olhar de quem descobre a gruta de Ali-Babá, de quem vê um naufrágio sem poder fazer nada, de quem testemunha um crime e vê com angústia que aquilo o excita, de quem contempla objetos anódinos e percebe pela primeira vez sua estranheza, seu encanto, seu invulnerável enigma.

Quantas vezes na sala escura fui arrebatado pela sensação de que a vida vale a pena, de que o mundo pode ser mudado para melhor, de que coisas grandiosas estavam à minha espera quando saísse à calçada, de que os imensos olhos da mulher que me fitavam da tela estavam mesmo olhando para mim. Um cinéfilo é alguém que ensina a si mesmo a acreditar, acreditar com uma fé sem limites e sem justificações. Aquilo ali existe. Aquilo ali aconteceu. A sala escura tem a importância dos lugares de culto, dos objetos sagrados, dos velhos pergaminhos onde há mil anos uma mensagem dirigida a nós nos espera, uma que somente nós saberemos decifrar.

O Cinema nos ensinou a olhar a vida como um copião. Ele nos mostra um universo paralelo onde é possível fazer existir apenas aquilo para onde se volta nosso olhar, onde é possível jogar fora o que não interessa, moldar o Tempo e o Espaço apenas com o essencial. Não importa o quanto a Grande Arte tenha sido e ainda venha a ser violentada, bastardizada, prostituída, lambuzada de excessos, corrompida pelos golpes baixos da ganância, contaminada pela vulgaridade ou pelo esnobismo. Apesar de tudo existe uma fonte de água pura, de onde as imagens luminosas em movimento continuam a fluir e sempre fluirão, para iluminar nossos olhos. Hoje é o dia do aniversário de todos os cinéfilos, aos quais abraço em nossa festa de luzes e sombras.

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