quinta-feira, 26 de fevereiro de 2009

0846) Guimarães Rosa e o turbante (2.12.2005)




Guimarães Rosa foi metade cientista, metade místico. 

Por um lado, tinha uma mente racional, organizativa, meticulosa, capaz de enxergar idéias com espantosa nitidez e de extrair delas até as derradeiras gotas do seu sumo cognitivo. 

Por outro lado, era um vislumbrador de umbrais. Um intuitivo que captava mensagens urgentes num idioma esquecido. Um sensitivo a quem o Acaso fazia tropeçar em serialidades improváveis ou simetrias perturbadoras. Assim era o homem, e assim é toda a literatura que nos deixou.

Conta ele, num episódio de Ave, Palavra, que tinha um amigo, cuja identidade protege sob o cognome de “Marduque”. Sujeito ótimo, cem por cento, mas que lhe produziu certa vez uma impressão esquisita, indefinível. O escritor julgou perceber no amigo “um intimíssimo tumulto, muito incômodo”. Diz Rosa: 

“Dali saí com Marduque um tanto transversalmente. (...) Comecei a sentir a urgente e defensiva precisão de não pensar nele”. 

Pensar no amigo, visualizar sua imagem, o incomodava, e ele acabou encontrando para isto uma solução estapafúrdia: 

“E, solução intermédia, acudiu-me então: poder pensar Marduque, mas... Marduque com um turbante na cabeça...”

Doideira? Concordo, mas o remédio de um doido é outro na porta, como prescreve a farmacologia popular. Rosa diz que depois que esta idéia lhe ocorreu tudo se pacificou. Só pensava em Marduque com o tal turbante na cabeça, o qual variava de cores ou de modelo, mas era um santo remédio para a lembrança incômoda: 

“A cada vez que pressentia, em presença ou à distância, aquele seu oculto sacolejar sulfúrico, bastava-me impor-lhe o turbante. Ele de nada desconfiava, e desse modo pude sustentar ilesa a nossa amizade, por tantos anos”.

Acontece que certo dia o escritor está na companhia de outro amigo a quem chama “Magnomuscário”, sujeito de tendências místicas “espécie de iogue swedenborguiano, gente que tudo muito vê”. Eis que Marduque também está presente, e cabe a Guimarães Rosa apresentar os dois amigos um ao outro. E logo em seguida Magnomuscário lhe revela ter sentido algo de estranho em Marduque, algo que por discrição não deseja especificar. Como Rosa insiste, ele faz apenas um comentário, complementado por um gesto: 

“Como Caifaz... podia usar um turbante...”

Guimarães Rosa confessa-se estarrecido com essa revelação, que nem sequer tenta explicar. Telepatia? Clarividência? Não sei, e o próprio escritor encerra o episódio confessando sua ignorância. 

Que um indivíduo sinta uma necessidade inexplicável de imaginar um conhecido usando turbante, já é algo um tanto fora-dos-eixos; que a mesma idéia ocorra a uma terceira pessoa, é coincidência demais. 

Podemos racionalizar imaginando uma possível semelhança de Marduque com um hindu iconograficamente famoso, requerendo o turbante para “fechar” a memória visual. Racionalizações assim, no entanto, são como tentar tapar uma torneira com uma pedra de gelo.







Um comentário:

  1. Legal essa: Místico e cientista. Gosto da mística. Inclusive, cheguei a formular uma frase sobre isso, certa vez: "A mística como olaria da vida". Acredito que a mística é um elemento que nos ajuda a modelar a vida, como se fossemos oleiros. Nessa semana, fiz uma comparação entre a vida humana e a natureza, que caminha numa direção parecida com a dessa questão. Está lá no meu blog. Citei o bambuzal, como símbolo de resistência, inclusive. Dê uma olhada. No mês de janeiro, lá também tem um artigo que reforça essas questões, que, inclusive está intitulado com o nome da frase que citei a pouco: "A mística como olaria da vida".

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