sexta-feira, 20 de fevereiro de 2009

0820) A noiva cadáver de Tim Burton (2.11.2005)



Falei recentemente nesta coluna da minha admiração pelos filmes de Tim Burton ao comentar A Fábrica de Chocolate (26 de agosto). O recém-estreado A noiva cadáver me parece imensamente superior a este outro. É um deleite para os olhos de quem se encantou com O estranho mundo de Jack (“The nightmare before Christmas”), um longa-metragem de animação feito inteiramente com bonecos. Esta é uma tecnologia que muitos julgavam sepultada com as novas (e rápidas, e baratas) técnicas digitais. Burton a traz de volta com o mesmo encanto espontâneo com que cultiva narrativas de terror gótico, ambientações da Inglaterra vitoriana e elementos visuais dos filmes B das décadas de 1930 ou 40. Burton é um garoto que adorava histórias de terror, e soube crescer o suficiente para manejar orçamentos de 150 milhões de dólares como o da Fábrica de Chocolate, ou os 80 milhões de dólares de Batman Returns, que valiam muito mais em 1992.

O filme transcorre ao longo de uma única noite, e é o luar que lhe dá uma paleta de cores que vão do cinza-grafite ao chumbo-azulado, passando pela asa-de-graúna-diluída, pelo guarda-chuva-daltônico e pelo durepoxi-exposto-ao-sol. Recorro a estes termos pouco vernaculares para tentar exprimir a riqueza de tonalidades desse ambiente soturno, melancólico, prateadamente romântico. Quando o protagonista encontra sua noiva macabra (não resumirei aqui a história), desce ao mundo subterrâneo do pós-vida, há uma transição brusca para outro registro cromático. As luzes e cores do mundo dos mortos sugerem as geléias e celofanes coloridos dos spotlights de um cabaré noturno. O mundo do Além é mais barulhento, mais festivo e mais vívido do que o mundo dos vivos.

O uso da animação em “stop motion”, em que os bonecos são colocados em posições sucessivas, com mínimas diferenças, e fotografados, dando a ilusão de movimento, cria uma envolvente impressão de realidade e fantasmagoria. O crítico Roger Ebert observa que este tipo de animação, com seus movimentos sutilmente mecânicos e que não correspondem à dinâmica de nossa coordenação motora, nos comunica a impressão de uma realidade transfigurada, muito mais do que a mera aparência das figuras.

A noiva cadáver é cheio de centenas de pequenos detalhes criativos, bem-humorados, que dão aos filmes de animação (em que são gastos dias e dias para fazer um gesto, às vezes meses para fazer uma única cena) uma espécie de “saturação de significado”, como se cada uma dessas imagens contivesse em si informação suficiente para um curta-metragem inteiro. Sua iconografia nos evoca um mundo onde se misturam infância e morte, violência e inocência, poesia e terror, apodrecimento dos corpos e incorruptibilidade dos sentimentos. O mundo de Tim Burton é o mesmo de Ray Bradbury e de Marc Chagall, ou o mundo mental de um poeta que tivesse a fascinação de Augusto dos Anjos pelo macabro, mas com o otimismo e a pureza juvenil de um Mário Quintana.

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