quinta-feira, 30 de outubro de 2008

0625) A janela da poesia (20.3.2005)




(Ferreira Gullar)

Ferreira Gullar tem uma definição irretocável para uma das grandes angústias na vida de um poeta. Diz ele: “O grande problema do poeta é convencer a mulher de que, quando está debruçado na janela, fumando, olhando lá pra fora, ele está trabalhando”. 

E não é mesmo? A mulher de um cara como esse não precisa ser fã de Chico Buarque para cantarolar “Vai trabalhar, vagabundo” enquanto espana os móveis. Homem debruçado na janela só pode estar espiando os decotes que passam. E eu vos direi, no entanto, que é em momentos como esse que brotam as grandes idéias os grandes versos, as grandes inspirações.

O trabalho criativo é imprevisível. Maiakóvski, no seu essencial livrinho Como fazer versos, afirma, justificando seu hábito de anotar todas as idéias que lhe vêm à mente: 

"Gasto todo o meu tempo com estas preparações. Passo assim 10 a 18 horas por dia e estou quase sempre murmurando algo. É com essa concentração que se explica a famigerada distração dos poetas. O trabalho com estas preparações vai acompanhado em mim de semelhante tensão que em noventa por centro dos casos sei até o lugar em que, no decorrer de quinze anos de trabalho, vieram-me e receberam sua forma definitiva tais ou quais rimas, aliterações, imagens, etc.”

É exatamente assim que sucede comigo, e com muitos outros, tenho certeza. Comparando com o mundo informático, eu diria que a poesia é uma janela do Windows que nunca se desliga; fica minimizada num cantinho da mente, mas pronta para ser aberta, e o trabalho retomado, ao menor estímulo. Mesmo quando estamos conversando, trabalhando noutra coisa, comendo, namorando, aquela janelinha está ativada e pronta. 

Daí a famosa frase de Fernando Pessoa: “E quando estou pensando, estou sempre pensando noutra coisa”. A outra coisa é a janela da poesia.

Não devemos achar que o trabalho criativo é puramente mental, porque idéias que não são escritas são arquivos que não são salvos: basta o computador ser desligado (ou seja, uma noite de sono) para que tudo se evapore. Não adianta ter uma idéia genial: é preciso colocá-la no papel, brigar com ela, batalhar, cortar, reescrever, dar polimento, e isto às vezes leva anos. 

Tem poemas que eu comecei a escrever há mais de vinte anos, ainda não prestam, mas podem prestar um dia. Idéias novas surgem nos momentos mais inesperados. E o poeta (a mente criativa em geral; pode ser também um matemático, um cientista) é como um pára-raios. Tem que estar em alerta permanente, vigília permanente, porque nunca sabe quando os raios vão cair, só sabe que eles acabam caindo. 

Um poeta debruçado na janela é um pára-raios. Ele está trabalhando, sim, madame. Um pára-raios não trabalha apenas no momento em que recebe uma descarga, assim como um policial não trabalha apenas no momento em que evita um crime, ou um bombeiro não trabalha apenas quando escorrega por aquele poste vertical e entra no caminhão. Um pára-raios trabalha 24 horas por dia, e acha pouco.





0624) O repórter do medo e da repulsa (19.3.2005)



Morreu nos EUA o escritor Hunter S. Thompson, aquele malucão que é considerado o fundador do “jornalismo gonzo”, seja isto o que for. Não digo “suicidou-se” porque seria um pleonasmo, uma redundância. Thompson passou a vida inteira matando-se aos poucos, com drogas, e de vez em quando registrava em suas reportagens seus acessos maníacos de auto-destruição, sempre temperados com um humor amargo, auto-ironia e descontração. Dizem que o sujeito que se mata é porque se dá pouco valor, mas eu acho que é justamente o contrário. Um sujeito que se mata é porque dá excessiva importância a si mesmo, e conseqüentemente aos problemas mesquinhos e minúsculos que aporrinham sua vida tanto quanto a do picolezeiro da esquina. Ele acha normal que o picolezeiro passe por essas coisas, mas, ele? O sujeito mais importante do mundo? Melhor pular da cobertura.

O grande público conhece Thompson, mesmo indiretamente, por causa do filme Fear and Loathing in Las Vegas, em que ele é interpretado por Johnny Depp. Ele é um dos grandes nomes de um tipo de jornalismo literário em que os norte-americanos são insuperáveis. Há vários rótulos para isto: “gonzo journalism”, “new journalism”, etc., mas isso para mim é como uísque escocês: sei que gosto, mas não distingo uma marca da outra. Em todo caso, é o jornalismo de Truman Capote em A Sangue Frio, o de Norman Mailer em Os Degraus do Pentágono, o de Tom Wolfe em The Electric Kool-Aid Acid Test (este aqui não li). É um mergulho total do escritor no assunto, trazendo para o momento da escrita toda sua informação cultural, suas próprias referências biográficas, seu jeito de viver, de pensar e de escrever. É também um jornalismo em que o escritor se permite usar técnicas da ficção: imaginar diálogos que não presenciou, descrever cenas que não sabe se aconteceram ou não, atribuir pensamentos a pessoas reais em circunstâncias reais. Como se vê, uma corda-bamba onde basta um vacilozinho para o sujeito ir à barra dos tribunais por calúnia, injúria, difamação e má literatura.

O traço distintivo de HST era o fato de que enquanto fazia as reportagens ele se entupia das mais variadas drogas, e isto era devidamente documentado no texto final. Não pensem que estou aconselhando ninguém a fazer o mesmo. Neste exato instante deve haver na América um milhão de pretensos “jornalistas gonzo” entupindo-se de drogas e imaginando, coitados, que isto os fará escrever tão bem quanto HST. Talentos de porte médio a droga frita dentro de uns poucos anos. Mas existem talentos robustos que travam uma batalha pública contra a droga durante décadas, o que faz muita gente atribuir erroneamente à droga um brilhantismo, uma agudeza mental que é justamente quem impede a droga de prevalecer durante esses anos todos. Foi o caso de William Burroughs, de Edgar Poe, e de Hunter S. Thompson, que no dia 20 de fevereiro, aos 67 anos, apertou o seu último gatilho.

0623) Luz e mágica industrial (18.3.2005)


(The Sims)

Jesus Cristo convida George Lucas para uma partida de golfe. Logo na primeira tacada, a bola de Jesus vai passando direto quando de repente dá uma quebra de 90 graus na trajetória e, pimba! Cai dentro do buraco. Lucas dá um olhar meio atravessado pra ele mas não reclama. Desfere sua tacada. A bola vai direto num tronco de árvore, ricocheteia, bate numa pedra, sobre no ar, choca-se com um helicóptero que vinha passando, cai sobre um lago, é abocanhada por uma perereca, a qual por sua vez é abocanhada por uma águia que se eleva nos ares com a perereca na boca; a perereca acaba por largar a bola que cai de uma altura de cem metros, pimba! Dentro do buraco. Jesus olha meio atravessado, e George Lucas o tranqüiliza: “Calma, calma, é tudo computação gráfica”.

A computação gráfica aplicada à imagem (cinema, TV, internet, vídeo) evoluiu tanto que me proporcionou minha teoria mais importante dos últimos vinte anos: “Somos o Video-Game de Alguém”. Nosso Universo é real, é feito de matéria, é organizado exatamente da forma descrita pelos nossos cientistas. Só tem uma coisa: tudo foi criado por uma raça de Super-Seres Cósmicos, com a finalidade de entretenimento, testes científicos e enriquecimento espiritual.

Não sei se o caro leitor já jogou, ou viu alguém jogar, The Sims, aquele joguinho em CD-Rom onde criamos algumas casas, algumas famílias, e eles passam a viver, trabalhar e interagir uns com os outros. As crianças adoram. Já saíram uns dez “pacotes de expansão” cheios de novidades: os Sims agora são vistos no trabalho, na rua, nas festas, nas diversões... Eles namoram, casam, têm filhos, morrem. E a garotada não desgruda do computador. Nós somos os Sims de uma raça cósmica: “Superior Intelligence’s Mankind System”. Eles planejaram os algoritmos matemáticos que presidem à organização da matéria, à criação da vida, à formação do Sistema Solar e dos ecossistemas terrestres, e por fim ao surgimento da Humanidade. São muito, muitíssimo mais poderosos do que os alienígenas misteriosos de Clarke & Kubrick em 2001, Odisséia no Espaço. Na verdade, os alienígenas de 2001 não passam de um pacote-de-expansão do programa original.

Confesso que minha teoria não é totalmente original, foi parcialmente bebida em livros como Simulacron 3 de Daniel Galouye, “The Tunnel Under the World” de Frederik Pohl e outros, que são os avós de Matrix. A computação gráfica me serviu apenas para demonstrar a possibilidade matemática de que isto ocorra. Com nossa tecnologiazinha pré-histórica, somos capazes de determinar matematicamente cada ponto de uma imagem aparentemente tridimensional, sua cor, sua textura, sua localização, seus deslocamentos. Somos capazes de usar esses pontos para compor imagens, seres, pessoas. E criar cenas inteiras, filmes inteiros com essas nuvens de pontos coloridos, fazendo cada criatura dessas obedecer nossas instruções: “Sente ao teclado... escreva sua coluna do jornal...”

0622) A praga do telemarketing (17.3.2005)



De vez em quando algum amigo meu se queixa: “Ligo pra sua casa e só dá secretária eletrônica!” Minha resposta: “Claro, foi pra isso mesmo que a instalei”. Ele: “Para manter os amigos à distância?” Eu: “Não, para filtrar as ligações. Eu só atendo o telefone se souber quem está falando”. Uma das razões para isto é a praga do telemarketing que, pelo menos aqui no Rio, é uma dor de cabeça permanente para quem tem telefone em casa. Você entra no chuveiro, o telefone toca, e você, que está esperando uma ligação importante, enrola-se na toalha e sai molhando o corredor até o aparelho. Do outro lado, uma voz feminina cheia de jovialidade lhe pede uma doação para um asilo de velhinhos. Nada contra os velhinhos, mas minha única vingança possível é dizer que não, muito obrigado.

Ou então eu interrompo uma refeição para atender, e do outro lado é uma moça que tenta por fina força me convencer a aceitar mais um cartão de crédito além dos dois que já possuo. Ou então é um banco atrás de novos correntistas. Ou então uma corretora de seguros. Ou então uma editora me oferecendo assinatura de revista a preço de banana. Por estas e outras eu não interrompo mais o meu banho, não deixo um prato pela metade, não largo o teclado quando ouço o telefone tocar lá fora. Se o fizesse, não teria tempo para mais nada senão ficar repetindo “Não, muito obrigado”, com a resignação de um papagaio.

Às vezes, quando a interrupção vem num momento mais inadequado, a vontade que me dá é explodir, dizer palavrões, tratar mal a pessoa lá do outro lado. Duas lembranças me dissuadem disto. A primeira é o fato de que nos EUA, há pouco tempo, uma dona-de-casa atendeu mal uma dessas ligações e o telefonista (era um cara de maus bofes) passou a ameaçá-la – afinal, ele sabia o nome, o telefone e o endereço dela, e ela não sabia nada sobre ele. A segunda é o fato de que minha filha já foi telefonista do Sebrae e mais de uma vez chegou em casa com os olhos inchados, porque algum brutamontes de maus bofes a tratou mal. Eu sou do tempo antigo, e o que não quero que façam à minha filha não vou fazer à filha dos outros.

Aliás, quero refazer esta última colocação. Todos nós que temos de quarenta anos pra cima vivemos reclamando da estupidez de certos hábitos contemporâneos, e contrapomos a eles os hábitos “do tempo antigo”. Amigos, mudemos de estratégia. Dizendo assim estamos desvalorizando nossos valores. Tratar bem a filha dos outros não é coisa antiga, é coisa moderna, é civilização. Invadir o espaço telefônico alheio, não é eficiente nem moderno: é uma grosseria, um desprezo pelo cliente, comparável ao “spam”. Minha resposta atual, quando tenho o azar de atender uma ligação assim, é dizer: “Eu estava interessado, sim, em adquirir um novo cartão, mas recuso-me a me envolver com uma empresa que interrompe minhas atividades dessa forma grosseira e não-solicitada. Vocês acabaram de perder um cliente. Passe bem!”