quinta-feira, 30 de outubro de 2008

0624) O repórter do medo e da repulsa (19.3.2005)



Morreu nos EUA o escritor Hunter S. Thompson, aquele malucão que é considerado o fundador do “jornalismo gonzo”, seja isto o que for. Não digo “suicidou-se” porque seria um pleonasmo, uma redundância. Thompson passou a vida inteira matando-se aos poucos, com drogas, e de vez em quando registrava em suas reportagens seus acessos maníacos de auto-destruição, sempre temperados com um humor amargo, auto-ironia e descontração. Dizem que o sujeito que se mata é porque se dá pouco valor, mas eu acho que é justamente o contrário. Um sujeito que se mata é porque dá excessiva importância a si mesmo, e conseqüentemente aos problemas mesquinhos e minúsculos que aporrinham sua vida tanto quanto a do picolezeiro da esquina. Ele acha normal que o picolezeiro passe por essas coisas, mas, ele? O sujeito mais importante do mundo? Melhor pular da cobertura.

O grande público conhece Thompson, mesmo indiretamente, por causa do filme Fear and Loathing in Las Vegas, em que ele é interpretado por Johnny Depp. Ele é um dos grandes nomes de um tipo de jornalismo literário em que os norte-americanos são insuperáveis. Há vários rótulos para isto: “gonzo journalism”, “new journalism”, etc., mas isso para mim é como uísque escocês: sei que gosto, mas não distingo uma marca da outra. Em todo caso, é o jornalismo de Truman Capote em A Sangue Frio, o de Norman Mailer em Os Degraus do Pentágono, o de Tom Wolfe em The Electric Kool-Aid Acid Test (este aqui não li). É um mergulho total do escritor no assunto, trazendo para o momento da escrita toda sua informação cultural, suas próprias referências biográficas, seu jeito de viver, de pensar e de escrever. É também um jornalismo em que o escritor se permite usar técnicas da ficção: imaginar diálogos que não presenciou, descrever cenas que não sabe se aconteceram ou não, atribuir pensamentos a pessoas reais em circunstâncias reais. Como se vê, uma corda-bamba onde basta um vacilozinho para o sujeito ir à barra dos tribunais por calúnia, injúria, difamação e má literatura.

O traço distintivo de HST era o fato de que enquanto fazia as reportagens ele se entupia das mais variadas drogas, e isto era devidamente documentado no texto final. Não pensem que estou aconselhando ninguém a fazer o mesmo. Neste exato instante deve haver na América um milhão de pretensos “jornalistas gonzo” entupindo-se de drogas e imaginando, coitados, que isto os fará escrever tão bem quanto HST. Talentos de porte médio a droga frita dentro de uns poucos anos. Mas existem talentos robustos que travam uma batalha pública contra a droga durante décadas, o que faz muita gente atribuir erroneamente à droga um brilhantismo, uma agudeza mental que é justamente quem impede a droga de prevalecer durante esses anos todos. Foi o caso de William Burroughs, de Edgar Poe, e de Hunter S. Thompson, que no dia 20 de fevereiro, aos 67 anos, apertou o seu último gatilho.

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