quarta-feira, 17 de setembro de 2008

0556) Os personagens da Pulp Fiction (30.12.2004)



A pulp fiction, as revistas de histórias populares que floresceram nos EUA entre as décadas de 1920-40, e à qual os nossos best-sellers contemporâneos tanto devem, é esnobada pelos críticos literários pelos seus evidentes defeitos, o que faz com que eles acabem se quedando desinformados para as suas numerosas qualidades. Como toda literatura destinada às massas, a pulp fiction recorre à repetição, ao clichê, ao exagero. É preciso seduzir o leitor (o qual se pressupõe um indivíduo comum, que leva uma vida rotineira), mostrando-lhe personagens extraordinários e acontecimentos sensacionais. A ficção popular precisa ser “larger than life”, maior e mais deslumbrante do que a vidinha a que o leitor está acostumado.

Histórias desse tipo não lidam com os personagens complexos a que nos acostumamos através da leitura dos grandes autores dos séculos 19 e 20. O leitor “popular”, o leitor de X-9 ou de Amazing Science Fiction geralmente não experimentou essas grandes obras. Ele se sente mais à vontade com personagens típicos em situações típicas: o Cientista Louco, o Repórter Destemido, o Arqui-Vilão, o Milionário Arrogante, a Lourinha Indefesa... Com dois ou três parágrafos, o leitor já percebe de quem se trata, já assinala o personagem com um rótulo que lhe é familiar, e pode continuar a leitura com o intelecto em ponto-morto.

Personagens caricaturais assim acabam não tendo muito peso, portanto o escritor popular precisa exagerar na descrição de suas características externas (para que o leitor, bem ou mal, consiga visualizá-los) e na descrição de suas reações emocionais. Veja-se esta descrição: “Enquanto avançava, seus olhos escuros pareciam calcinar a terra diante de si, irradiando uma claridade abrasadora que prenunciava sua reputação de severidade inflexível em todos os assuntos.” Não, coleguinhas, não é o Deus do Velho Testamento, nem o Odin das epopéias nórdicas, é apenas o Inspetor Fache de O Código Da Vinci. O escritor de pulp fiction precisa assombrar o leitor, o qual presume ter a sensibilidade um tanto embotada. Não é um policial qualquer, é um policial diante do qual o leitor exclama, impressionado: “Puxa vida!”

O autor da pulp fiction não está interessado em criar tipos humanos, está interessado em nos contar uma história interessante. Deus o abençoe por isto, numa época em que a chamada “literatura erudita” enroscou-se sobre si mesma num círculo vicioso de enredos minimalistas, personagens sem nome e ambientações abstratas. Os imitadores de Samuel Beckett ou de Clarice Lispector reduziram a uma caricatura o universo literário destes grandes autores. Vai daí, é bem vinda a injeção de vitalidade, de luzes, de cores, de concretude cotidiana, de imaginação e de tudo que os autores de pulp fiction e de best-sellers nos trazem. Seria excelente, para a literatura, que surgisse um seguidor de Dan Brown para cada um de Samuel Rawet. E vice-versa.

0555) Alguns filmes do ano (29.12.2004)


(A Arca Russa)

Todo crítico de cinema gosta de fazer sua lista dos “Melhores do Ano”, e resolvi fazer a minha. Não sou propriamente crítico de cinema, mas um comentarista de filmes, e a verdade é que vou muito pouco ao cinema. Não vi alguns dos filmes mais comentados deste ano: não vi Kill Bill, Peões, Olga, Brilho Eterno de uma Mente sem Lembranças, Os Incríveis, As Invasões Bárbaras... Então não levem muito a sério esta lista, que não reflete o ano do mundo, mas apenas o meu. Alguns filmes foram lançados em 2003, mas só os vi em 2004. Sem nenhuma ordem de preferência:

DOGVILLE de Lars von Trier, um pesadelo sobre a crueldade e insensibilidade humanas, numa concepção cênica magistral que mistura cinema e teatro com rara eficácia. O RETORNO DO REI, o mais visualmente grandioso dos três filmes do “Senhor dos Anéis”, um filme para deleitar os olhos, e uma adaptação surpreendentemente fiel do livro de Tolkien. ALGUÉM TEM QUE CEDER, uma comédia meio bobinha, mas não é todo dia que você pode ver Jack Nicholson e Diane Keaton num mesmo filme, ambos mostrando na cara e no corpo a idade que realmente têm. A ARCA RUSSA, um plano-seqüência de quase duas horas de duração, no interior do Museu Armitage, em São Petersburgo. Uma experiência cinematográfica inesquecível, filme para comprar e ter em casa.

AS BICICLETAS DE BELLEVILLE, desenho animado francês com um traço invulgar, roteiro muito criativo, algo que deveria ser mostrado a todos os garotos que pensam que animação se divide entre Walt Disney e a Pixar. DIÁRIO DA MOTOCICLETA, um filme que só foi discutido por dois ângulos (“Che Guevara era bom ou ruim? O filme é brasileiro ou não?”), mas que seria um bom filme mesmo que fosse uma história de ficção, dirigida por um argentino. SHREK 2, uma gozação digital bem-humorada, intensamente referencial (tem uma citação ou paródia em quase todas as cenas).

FAHRENHEIT 9/11 de Michael Moore, um salutar exemplo de que não são apenas os soviéticos que fazem filmes de agitação e propaganda, os americanos também têm uma queda danada para o gênero. CRÔNICA DA INOCÊNCIA, história de um garoto que pensa ser a reencarnação de um garoto morto, filho de outra mulher; curiosa experiência narrativa de Raul Ruiz, chileno especializado em filmes muito pouco narrativos. O ESPANTA TUBARÕES, um ótimo desenho animado digital na linha de “Procurando Nemo”, meio inspirado no conto popular do alfaiate “Mata Sete”, um cara pacífico que é tido como valentão. MÁ EDUCAÇÃO, mais uma viagem típica de Almodóvar em tornos de seus lugares comuns (cinema, homossexualismo, crime passional, igreja), como sempre com um roteiro cheio de reviravoltas e com excelentes atores.

E desculpe se achou a lista desigual, caro leitor, porque não é a lista dos melhores filmes que vi este ano. Estes são todos os filmes que me lembro de ter visto este ano. Hoje em dia sou acima de tudo um escravo do DVD e da TV a cabo, mas a casa do cinema tem muitas moradas.

0554) O thriller de mistério histórico (28.12.2004)



Alguns amigos se queixaram de que num artigo recente eu teria esnobado O Código Da Vinci, o best-seller do momento. Ledo engano, meus camaradinhas. Eu adoro este tipo de livro. Aliás, quando um dia publicarem minhas Obras Completas em papel-bíblia, os netos de vocês perceberão que passei muito mais tempo da minha vida defendendo a pulp-fiction americana do que analisando a obra de Guimarães Rosa, meu escritor preferido. Nosso mundo acadêmico vive a debruçar-se sobre o escritor mineiro, e torce o nariz para a ficção popular. Por uma questão de equilíbrio, prefiro estudar o que os outros não estudam.

Li o livro de Dan Brown, e não o achei um grande livro, comparado com outros do mesmo gênero, o thriller de mistério histórico. Gostei muito mais, por exemplo, de O Clube Dumas, de Arturo Pérez-Reverte, que além da história bem concebida tem uma prosa rica e agradável, cheia de surpresas. Já O Quadro Flamengo, do mesmo Reverte, é mais propenso ao clichê e à escrita superficial, embora seja um livro de leitura tão fluente quanto o Da Vinci. No mesmo gênero, gostei muitíssimo mais de O Pêndulo de Foucault de Umberto Eco (livro que muitos compraram, alguns leram e poucos gostaram). Por que? Porque sou manipulado pela crítica e acho genial tudo que Eco escreve? Nada disso, uma vez que jamais consegui passar da página 20 do intransponível A Ilha do Dia Anterior. A gente se identifica mais com uns livros, e menos com outros; isto é tudo.

O Pêndulo de Foucault me agradou porque, para além de suas aventuras inverossímeis e suas criptografias obscuras, era claramente um livro pessoal, como o era O Nome da Rosa. Ali há trechos de uma juventude nas cidadezinhas de uma Itália fascista, que parecem embebidos de verdade, de vida vivida, de um “saber só de experiências feito”. Estes trechos compensam as longas citações livrescas. No livro de Dan Brown, fica muito visível a colagem da pesquisa feita pelo autor, que a cada passo interrompe a narrativa para nos dizer o preço da construção de um prédio, ou a origem do nome de uma praça. Na pulp fiction, vê-se com nitidez o trecho que foi “cortado e colado” para dar a impressão de erudição. Não é algo que o autor sabe profundamente, é algo que ele copiou de um manual para impressionar um leitor menos informado do que ele.

Por que, então, eu perco meu tempo lendo estes livros? Resposta: gosto de mistério histórico, gosto de narrativas que exumam fatos do passado e criam teorias conspiratórias sobre eles, reinterpretando a História, a Arte, a Religião... Se o autor o faz com muito ou com pouco talento literário é algo que pesa durante a leitura, mas para mim é secundário. Não é o estilo literário que procuro nestes livros (embora seja um prazer encontrá-lo, como em O Nome da Rosa), é a viagem misteriosa, a decifração de códigos, a aventura de pensar que o mundo é misterioso e cheio de verdades que ninguém ousou desvendar.

0553) Ronaldinho Gaúcho (26.12.2004)


Se alguém tivesse me perguntado “Você prefere que Ronaldinho Gaúcho ganhe o prêmio da Fifa de Melhor Jogador do Mundo, ou que o Flamengo escape do rebaixamento?”, eu hesitaria um pouco, mas diria: “Rapaz, dê logo o prêmio ao menino, e o Flamengo que aprenda.” Nada foi tão justo no futebol, este ano, quanto um prêmio assim para um sujeito que não apenas joga de uma maneira bela, mas que o faz com ênfase, com veemência, com eufórica convicção. Ronaldinho Gaúcho parece imbuído de uma missão no mundo: a de mostrar a todos esses cabeças-de-bagre e espíritos-de-porco que povoam o futebol brasileiro que é possível produzir obras de arte e ganhar jogos, sem que uma coisa prejudique a outra.

A primeira coisa que o vi fazer no futebol (eu e o Brasil inteiro) foi um gol (se não me engano, no Pré-Olímpico de 2000) em que ele entrou na área em velocidade, ergueu a bola meio metro com um toquinho do calcanhar esquerdo, e desferiu um tivuco que derrubou o goleiro pela mera deslocação do ar. Depois disto vieram lances memoráveis: o banho-de-cuia que ele deu em Dunga num Gre-Nal (“banho-de-cuia”, caros leitores de além Paraíba, é o mesmo que “lençol”), o gol espírita contra a Inglaterra na Copa de 2002, e, este ano, o rodopio que ele deu em cima de um zagueiro do Haiti antes de marcar o gol, no jogo da Seleção em Porto Príncipe. (Não venham com esse papo de que “no Haiti é fácil”. Quando um repentista faz um verso genial, tanto faz se ele está cantando com Pinto do Monteiro ou com Zezim Buchudo, é o verso que vale.)

No último jogo Barcelona x Real Madrid, há algumas semanas, quando Ronaldinho Gaúcho pegava na bola havia uma sensação de arrebatamento coletivo em todo o Estádio. Já experimentei momentos assim no futebol, momentos em que a bola chega num jogador e nosso gesto instintivo é ficar de pé, porque sabemos que algo grandioso vai acontecer. É por momentos assim que o futebol se justifica, é à espera de momentos assim que suportamos milhares de horas de tropeções, trancos, carrinhos, cotoveladas, maltratos à bola. Ronaldinho nos dá esta experiência porque nele se aliam força, elasticidade, rapidez, domínio de bola, e principalmente ousadia. A mesma ousadia que fazia Pelé apossar-se da bola e, em vez de esquivar-se ao combate dos zagueiros, partir na direção deles como se quisesse afugentá-los.

Dias atrás, ao fazer no finzinho do jogo um golaço que deu a vitória ao Barcelona, Ronaldinho Gaúcho saiu correndo pela lateral do campo, com o estádio inteiro gritando de forma ensurdecedora; as câmaras mostravam em close seu riso de delírio e desabafo, enquanto ele estava gritava: “Eu-sou-fo-da!” Alguns jornalistas criticaram esta reação, dizendo que era arrogância, “marra”, etc. Discordo, coleguinhas. Quando o cara grita aquilo, sabe que ninguém está ouvindo. É o desabafo de quem procurou o gol durante 89 minutos e finalmente o conseguiu, e logo um gol espetacular. Pode gritar, Ronaldinho, porque 2004 foi seu.

0552) O apóstrofo americano (25.12.2004)




Já falei aqui sobre os memes, os grãos de idéia ou de discurso que se instalam em nossa memória e passam a contaminar nosso pensamento, propagando-se para mentes alheias através da nossa fala, como se fossem vírus de computador (“Os memes”, 23.5.2003). 

Um subgrupo perigoso dessa categoria são os erros lingüísticos, que por alguma razão misteriosa parecem proliferar com muito mais facilidade do que os acertos. E dentre eles, o uso americanizado (e errôneo) do apóstrofo é um dos mais constrangedores. 

Peguem o carro e dêem uma volta. Em qualquer subúrbio de cidade brasileira existirá uma lanchonete chamada “Sanduíche´s”, ou um boteco simpático com o nome de “Mariângela Drink´s”, ou um motel chamado “Love Night´s”.

Meus amigos gramáticos explicariam isto melhor do que eu, mas posso resumir a questão dizendo que em inglês essa letra “S” precedida de um apóstrofo indica o caso genitivo ou possessivo. Assim, “Fred´s” significa “ de Fred” (incluindo as variantes possíveis: “algo que pertence a Fred”, “algo que se refere a Fred”, “algo que provém de Fred”, etc.). 

Também se usa para indicar a supressão de uma ou mais letras (como também ocorre no português), mas em geral é isto. 

O que ocorre é que o uso do apóstrofo em português é muitíssimo mais raro do que em inglês, e chega a ser mesmo um recurso sofisticado, coisa de literatos como Castro Alves que já começava um poema botando pra quebrar: “ ´Stamos em pleno mar...”

O brasileiro médio não é exposto às sofisticações da língua portuguesa, mas é expostíssimo às banalidades da língua inglesa, e nasce daí essa propensão a usar o apóstrofo simplesmente para adornar uma palavra no plural, para torná-la americanizada e mais chique. 

No exemplo inventado acima, “Mariângela Drink´s” leva a crer que aquele bar pertence a uma pessoa chamada Mariângela Drink. Para exprimir a provável intenção da proprietária, o certo seria dizer “Mariângela´s Drinks”.

O uso errôneo do apóstrofo é engraçado, mas mesmo certo ele se torna cômico quando aparece num contexto muito incongruente: “Mandacaru´s Artesanato” é uma coisa meio grotesca, parece um silicone fora do lugar, um enxerto de algo que não combina com o que tinha antes. 

O apóstrofo americano é patético quando revela a nossa fascinação abobalhada por tudo que nos venha dos EUA, por tudo que pareça conferir, pelos poderes mágicos do mero uso, um pouco de civilização, sofisticação, status social. 

Ele exprime também, por outro lado, a nossa adoração infantil pelas coisinhas bonitinhas cuja utilidade nos escapa, mas que nos seduzem pelo que têm de exótico e de “cheguei!”. Gostamos de apóstrofos do mesmo modo que gostamos de ípsilons e agás supérfluos, de piercings, de batoques enfiados no lábio ou na orelha, de dentes de ouro, de cílios postiços, de pega-rapaz na testa, de chaveiros com berloques, de fitas coloridas nas platinelas do pandeiro ou nas cravelhas da viola, de fazer rosca na ponta do bigode.