terça-feira, 22 de julho de 2008

0457) O alfaiate cortando o pano (5.9.2004)




(Fausto, alfaiate)

Amanhã, dia 6 de setembro, comemora-se o Dia do Alfaiate. Acho uma besteira esses dias comemorativos, mas a profissão de alfaiate sempre me pareceu tão nobre quanto a de Alquimista ou a de Poeta. Tem tudo a ver. 

Quem tem umas belas páginas sobre esse ofício é Osman Lins, filho de alfaiate, em “Um dia que se despede do calendário” (em Evangelho na Taba), onde ele lembra com carinho as horas da infância que passou vendo o pai trabalhar, vendo seus utensílios: a grande mesa com gavetas, a almofada de alfinetes, os tocos de giz colorido, a pesada tesoura com tiras de brim envolvendo os aros do cabo, os manequins, as fitas métricas, as réguas.

Diz Osman: 

“Posso dizer que o vejo ainda, o brim estendido cuidadosamente na mesa, cantando com a boca fechada, traçando, com o auxílio de seus instrumentos, uma geometria cuidadosa e que lembrava certos desenhos dos meus livros escolares: os meridianos, o Zodíaco, as constelações.” 

Como não perceber, nestas cenas vividas com tanta intensidade, uma das fontes do rigor cósmico do autor de Avalovara?

Sou da geração das roupas compradas feitas, mas minha memória também guarda cenas de meu pai me levando a Seu Fausto ou a Seu Murilo (cujo filho Jerre viria a ser meu amigo aos 18 anos) para fazer “a farda nova” ou uma calça para o Natal. 

Lembro o jeito paciente com que eles tomavam medidas, lápis atrás da orelha, e faziam anotações cabalísticas num pedaço de papel; lembro os recortes de papel cobertos de linhas e números; lembro as estrelas de metal das carretilhas, deixando rastros pontilhados no papel ou no pano.

Louis Pauwels, outro escritor filho de alfaiate, diz: 

“Na fronteira da mística pura e da ação social, meu pai, preso à sua mesa de alfaiate mais de quatorze horas por dia – e vivíamos à beira da miséria – conciliava um ardente sindicalismo e uma busca da libertação interior. Nos gestos muito limitados e humildes do seu ofício, introduzira um método de concentração e de purificação do espírito a respeito do qual deixou centenas de páginas.” 

Em outro trecho de O Despertar dos Mágicos, Pauwels relata seu primeiro encontro com um alquimista, e as indicações que este lhe deu sobre a Grande Obra: “Nada além da matéria, apenas o contato com a matéria, o trabalho sobre a matéria, o trabalho com as mãos.” Ele compara a alquimia à jardinagem e à pesca, e a define: “Trabalho de mulher e brincadeira de criança.”

Certos ofícios humanos pressupõem um know-how milenar transmitido pelas gerações, uma tecnologia-do-conhecimento guardada e transmitida por corporações de homens dedicados, meticulosos, tranqüilos. 

O ofício do alfaiate, como o do alquimista ou o do poeta, está entre aqueles exercícios de aperfeiçoamento interno com modestos resultados físicos (um miligrama de ouro, uma sextilha, uma farda do Estadual da Prata...). São (para citar Osman) “os ofícios delicados, cujo sentido não está em produzir muito, e sim em produzir serenamente.”







0456) Estatísticas olímpicas (4.9.2004)



Um humorista disse certa vez que as estatísticas são como os biquínis: o que mostram é interessante, mas o que tentam esconder é mais interessante ainda. Todo cômputo estatístico obedece a critérios escolhidos por quem o organiza. Governos e oposições passam a vida inteira invertendo as estatísticas divulgadas pelos adversários, para mostrar que a situação é outra. E outro humorista disse que um estatístico é um cara para quem um sujeito com a cabeça num forno e os pés num “freezer” está, estatisticamente, em boa situação.

O Australian Bureau of Statistics, órgão do governo australiano, resolveu fazer uma estatística própria do quadro de medalhas olímpicas, que é organizado, como sabemos, em ordem decrescente do número de medalhas de ouro conquistadas. Os australianos estão animados com os Jogos Olímpicos, desde que os sediaram em Sidney-2000, conquistando um ótimo 4o. lugar. Agora, em Atenas, repetiram a colocação. Pois o pessoal do ABS propôs um critério: Que tal se a gente relacionasse o número de medalhas de ouro com o número de habitantes do país? Porque é claro que a China, com mais de um bilhão de pessoas, tem mais chances de produzir medalhistas do que Mônaco ou Andorra.

O saite onde estão estes cálculos tem um endereço quilométrico, que espero saia por inteiro aqui no jornal: http://abs.gov.au/Ausstats/abs@.nsf/57a31759b55dc970ca2568a1002477b6/be9f47591541e29eca256ef40004f25a!OpenDocument . Se não achar e quiser uma cópia, caro leitor, me mande um email. Porque nossos amigos austrais chegaram à conclusão de que o grande vencedor dos Jogos de Atenas não foram os EUA, e sim as Bahamas, que com pouco mais de 300 mil habitantes faturaram um ouro e um bronze. Em segundo lugar vem a Noruega, que com 4 milhões e meio de pessoas ganhou 5 ouros e 1 bronze. Em terceiro aparece (adivinhem!) a Austrália, que com uma população de 20 milhões ganhou este ano 17 ouros, 16 pratas e 16 bronzes.

É um conceito interessante, concorda? Eu acho que tem uma certa lógica, mesmo constatando que por este cálculo o Brasil cai de 18o. para 55o. lugar. O que me consola é ver a queda dos três primeiros colocados no ranking oficial: os EUA despencam de 1o. para 34o., a China de 2o. para 53o. e a Rússia de 3o. para 22o.

Tiro disto duas lições. A primeira é que por mais que uma conquista esportiva seja um valor em si, é sempre útil vê-la no contexto econômico e social da disputa. (Penso nisto sempre que vejo o São Caetano no campeonato brasileiro) A segunda é que a arte da estatística consiste em pegar um quadro de número frios, objetivos, organizados em fileiras e colunas... e observá-lo de todos os ângulos possíveis, até encontrar um que mostre aquilo que queremos ver. Que tal se a gente organizasse o quadro olímpico em função da renda per capita? Ou da quantidade de associações esportivas e atléticas? Ou do total de verbas investidas pelo governo? Quem sabe a gente não melhoraria esse 18o. lugar?

0455) O momento de decisão (3.9.2004)



Ainda emocionado pela medalha de ouro do time de vôlei, voltei a ligar a TV durante a tarde para pegar o finalzinho da Maratona. Gosto de maratonas e de corridas-de-São-Silvestre, mais do que das provas de velocidade. Gosto desses esforços do tipo devagar-e-sempre, se bem que devagar não é bem o termo. Não me identifico muito com a explosão do “sprinter” que faz 100 metros em 10 segundos. Gosto mais do cara que é capaz de sustentar uma teimosia durante quarenta quilômetros, cinqüenta anos, esse tipo de coisa.

Surpresa! Quem está liderando é um brasileiro, Vanderlei Cordeiro de Lima. Lá vem ele, deixando para trás um pelotão de fundistas, inclusive aquele crioulo magro, o queniano Paul Tergat, que já conheço de outros reveions. Vanderlei vem com 40 segundos de vantagem! Fico aos pulos por dentro de casa. Já pensou? A gente encerrar a Olimpíada ganhando o ouro na Maratona, a prova mais tradicional de todas?

De repente... que é isso? Um sujeito maluco, fantasiado, invade o asfalto, abraça Vanderlei, empurra-o para fora da pista, derruba-o na calçada, no meio da multidão! Há um tumulto generalizado. As câmaras da TV se aproximam. Guardas e fiscais da prova estão tendo trabalho para separar os dois. Vanderlei está possesso: “Como é que pode! O cara me tirou da pista! Eu ia ganhar a prova!” Os fiscais, atarantados, falam nos walkie-talkies. Vejo flashes rápidos do público que espera no Estádio Panathinaiko, a consternação de todos ao contemplar pelo telão o enorme “salseiro” armado em torno da briga. Outros corredores perdem um tempo precioso tentando varar a multidão, que invadiu a pista. Minutos depois já temos flashes das autoridades do COB exigindo a anulação da prova – que aliás acabou sendo interrompida mesmo, devido ao tumulto. Aparece um novo flash com Vanderlei. Ele está nervoso, revoltado: “Eu ia ganhar. Todo mundo viu que eu vinha na frente. Não ganhei por causa do cara. Quero minha medalha!”

Não foi bem assim, não é, caro leitor? O mundo inteiro viu que Vanderlei perdeu uns 15 segundos desvencilhando-se do maluco, e voltou à corrida. Ele poderia perfeitamente ter “armado o maior barraco”, convocado testemunhas, chamado os advogados, pressionado o Comitê para que lhe desse ali mesmo a medalha, e mais uma polpuda indenização-por-danos-morais-e-materiais. Conheço uma porção de “desportistas” que fariam exatamente isto. Vanderlei, não. Perdeu tempo, perdeu pressão, e ficou meio desorientado – tanto que acabou ultrapassado pelos dois corredores que chegaram à sua frente; mas não parou, e creio que nem pensou em parar. Espírito olímpico? Bravura? Patriotismo? Acho que não. Acho que Vanderlei é acima de tudo um maratonista, e a lei do maratonista, menos do que chegar em primeiro, é mostrar que consegue completar a prova. Vanderlei tomou a decisão certa, na fração de segundo que teve para decidir. Que os deuses da Grécia o abençoem. E nos iluminem com seu exemplo.

0454) A violência na TV (2.9.2004)



Eu me preocupo muito quando vejo esses garotos de hoje diante da TV contemplando assassinatos, roubos de carro, assaltos à mão armada, explosões criminosas, chantagens, estupros, torturas, espancamentos. Não, não estou me referindo ao Jornal Nacional ou a Linha Direta: refiro-me aos desenhos animados que a galera de hoje assiste nas TVs a cabo. Muita gente me alerta de que isto é o começo do fim do mundo. Que estamos forjando uma geração de pit-boys. Que essa banalização da violência tende a torná-la irrelevante e a anestesiar os escrúpulos.

Será que é? Pode ser. Não tenho certeza de nada. Me lembro apenas que passei a minha infância matando gente por dentro de casa, minha mãe preparando o almoço e eu entrincheirado na cozinha, rifle em punho, defendendo os batalhões do General Custer, fuzilando sem piedade os peles-vermelhas que queriam arrancar o nosso escalpo. Acho que me serviu foi de terapia, porque cresci, sou um cara pacífico, nunca atirei em ninguém. Pra completar, já li Enterrem meu coração na curva do rio e a Carta do Chefe Pontiac, e minha compreensão do problema indígena está bem melhorada.

Penso nisto diante das notícias da primeira execução pública de um condenado à morte na Índia nos últimos 13 anos. Dhananjoy Chatterjee, de 41 anos, foi executado no mês de agosto, depois de passar 13 anos no “corredor da morte”, pelo estupro e assassinato de uma adolescente. A execução teve intensa cobertura da mídia. Dias depois, um garoto de 14 anos chamado Prem Gaekwad amarrou uma corda ao pescoço e pendurou-se no ventilador do teto, morrendo asfixiado. O pai do menino disse tratar-se de um garoto muito inteligente; disse também que o garoto fez muitas perguntas sobre o modo como o criminoso iria ser executado. Uma semana depois, em Bengala Ocidental, uma garota de 12 anos morreu enforcada quando tentava explicar ao irmão mais novo como tinha sido a execução de Chatterjee. No mesmo estado, outro garoto de 10 anos escapou por pouco de outra “execução simulada”.

O meu palpite é de que as crianças sabem muito bem quando uma coisa é filme e quando uma coisa é pra valer. Não só a linguagem usada pela TV é diferente: eles vêem uma expressão diferente nos olhos e nos rostos dos pais. Eles sentem que a reação emocional da sua família e de toda a vizinhança é outra. Todo mundo comenta. Todo mundo toma partido. A morte daquele cara é mais real do que a de mil índios ou mil extraterrestres. É um ritual, é tratado como um ritual: ceias são interrompidas, as pessoas se agrupam diante da TV para ver o último boletim. Aos olhos de uma criança, o fato fica carregado daquela eletricidade emocional que elas e os animais domésticos são os únicos a captar. Desenho é desenho, mas quando uma morte é real as crianças percebem, e o modo como irão reagir vai depender do que cada uma tem na cabeça, vai depender do tipo de esclarecimento que recebem em casa.