quinta-feira, 27 de novembro de 2008

0647) A noite do Judas (15.4.2005)


(Guy Fawkes)

A tradição de queimar um “judas” no Sábado de Aleluia é um exemplo de como o instinto destrutivo é condicionado socialmente. Dá gosto ver o prazer com que as crianças dependuram no poste aqueles bonecos desengonçados, entopem seus bolsos de rojões e peidos-de-véia, e na hora H incendeiam suas roupas, fazendo-os pipocar em todas as direções. Depois, botam abaixo a carcaça, descem-lhe o porrete, até que um o pega pela corda no pescoço e sai correndo rua afora, enquanto a turba o persegue, danando o cacete nos despojos da vítima. No outro dia, haja donas-de-casa a reclamar que quebraram todos os cabos-de-vassoura da casa.

Na Inglaterra as crianças comemoram em 5 de novembro a noite de Guy Fawkes, ou “Bonfire Night”, noite das fogueiras. Em 1600-e-cocada um grupo de conspiradores católicos, inconformados com as perseguições do Rei Jaime I, teve a brilhante idéia de explodir o Parlamento britânico, com rei, nobres, e tudo o mais. Eles chegaram a estocar dezenas de barris de pólvora no subsolo do Parlamento, o que dá uma boa idéia do que eram os sistemas de segurança daquele tempo. Mas na noite de 5 de novembro rolou uma denúncia e foi feita uma inspeção. Um dos conspiradores foi flagrado junto à pólvora: justamente o tal do Guy Fawkes, que foi torturado e morto. Desde então, a noite-do-judas inglesa é a Noite de Guy Fawkes. Preparam-se bonecos usando um capote e um chapelão (que, ao que parece, era a roupa do personagem), os bonecos são arrastados pela rua, pendurados, têm os bolsos cheios de fogos de artifício, e o resto é todo igual.

Isso me dá duas idéias. A primeira é a constatação óbvia de que as sociedades precisam de bodes expiatórios, de inimigos simbólicos nos quais possam extravasar sua fúria linchatória, protegida e avalizada por uma tradição folclórica. A segunda é uma idéia política. Imaginemos que, cem anos depois do golpe de Guy Fawkes, os católicos tivessem tomado o poder na Inglaterra. Ele passaria de terrorista a herói, o dia 5 de novembro seria feriado nacional, e haveria uma estátua dele em frente ao Parlamento. Sua efígie estaria em notas e moedas, e talvez quem estivesse sendo queimado nas ruas na Noite das Fogueiras fosse o rei que mandou matá-lo.

Porque é mais ou menos isto que temos aqui no Brasil, com um sujeito como Tiradentes. Fosse isto aqui, ainda, uma monarquia, e o pobre do inconfidente mineiro estaria sendo enforcado, queimado e esquartejado alegremente pelas nossas crianças, todas imbuídas do mesmo espírito cívico que hoje as faz homenagear o herói. Não sabemos muito bem porque queimamos uns e celebramos outros; ou melhor, sabemos, sim. Fazemos isto porque é o que nos foi ensinado no lar, na escola e no bairro, com o aval das autoridades civis e eclesiásticas. Mas ninguém me impede de matutar, daqui do meu canto, que o conceito de “terrorista” e de “herói” muda quase tão depressa quanto o de “campeão brasileiro de futebol”.

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