segunda-feira, 17 de novembro de 2008

0640) Autobiografias (7.4.2005)



“Resuma sua vida em umas poucas palavras”. É um desafio inquietante, mas milhares de indivíduos já o enfrentaram, quando tiveram de colocar um título em suas autobiografias. Não direi que o título de um tal livro define a personalidade de quem o escreveu, até porque na confecção desses títulos influem também a vaidade, a arrogância, a falsa modéstia. Em todo caso, é como dizem os psicanalistas: “Tudo que não vale como verdade vale como sintoma”.

Minha Vida é de todos o título mais invisível, mais anódino, um título-placebo que todo mundo já escolheu, do incendiário Leon Trotsky ao vaselinoso Bill Clinton. Mais sutil é o título escolhido por Rudyard Kipling, que intitulou suas discretas memórias Something of Myself, título que para Jorge Luís Borges era justo mas podia ser melhorado para “Very Little of Myself”. Robert Bloch, o autor de Psicose, recorreu a um trocadilho, Once around the bloch, que numa possível tradução brasileira poderia ser adaptado para O Bloch do eu sozinho.

A primeira autobiografia que li foi Pelos caminhos de minha vida, de A. J. Cronin (sim, amigos, era um de meus autores prediletos na adolescência, e ainda gosto); a segunda foi Meus verdes anos de José Lins do Rego. Títulos com um sentimentalismo à beira da pieguice, o que deve ser evitado. Gosto de títulos presunçosos mas bem-humorados como o My wicked, wicked ways (algo como “Minhas sacanagens”) do grande mulherengo que foi o ator Errol Flynn. Mas acima de tudo prefiro os títulos misteriosamente poéticos como The Motion of Light in Water (“O movimento da luz na água”) do escritor de ficção científica Samuel R. Delany, ou A Postillion Struck by Lightning (“Um cocheiro atingido por um raio”) do ator Dirk Bogarde. O filho de Charles Chaplin, Michael, intitulou seu livro de memórias I couldn´t smoke the grass on my father´s lawn (“Nunca fumei maconha no jardim de meu pai”), mas, dadas as propriedades notoriamente amnesíacas do THC, pode ser que ele esteja equivocado.

O escritor Medeiros e Albuquerque tem um título autobiográfico encantador: Quando eu era vivo. Com sutileza, ele admite, num mesmo gesto, sua morte e sua imortalidade. José Américo de Almeida intitulou suas memórias com o precavido Antes que me esqueça, enquanto o diretor de TV Daniel Filho optou pelo angustiado (e talvez profético) Antes que me esqueçam.

O cineasta Roger Vadim produziu um dos títulos de autobiografia mais surpreendentes (embora, em retrospecto, previsível, e até inevitável): Bardot, Deneuve, Fonda. Ninguém perdoou ao grande conquistador resumir sua própria vida ao nome de suas ex-esposas mais belas e mais famosas – como já não lhe tinham perdoado a conquista de cada uma das três. Calma, colegas. Tiremos o chapéu com respeito para um sujeito que, não importa se seus filmes eram bons ou maus, foi contemplado não apenas uma, mas três vezes consecutivas, com o Paraíso.

Um comentário:

  1. Quando eu fizer minha autobiografia, será "Memórias póstumas de um ainda-vivo".

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