George Orwell, comentando os romances de Charles Dickens, os definiu assim: “Uma arquitetura horrível, mas com gárgulas maravilhosas”.
A fórmula se aplica a muita coisa na literatura. Se entendi bem, Orwell queria dizer que os livros de Dickens têm defeitos de estrutura, são mal planejados, não têm unidade, mas estão repletos de passagens brilhantes, descrições vívidas, personagens inesquecíveis.
É uma tendência do romance em estilo folhetinesco, aquele texto que vai sendo planejado à medida que vai sendo escrito. Não se pode exigir dele a clareza apolínea de um romance de Osman Lins, de Georges Perec ou de Autran Dourado, esses planejadores contumazes.
O escritor folhetinesco não planeja: escreve aos arrancos. Assim era Alexandre Dumas, assim era Henry Miller, e assim era Jorge Amado. Nenhum destes jamais teve vocação arquitetônica.
Alguns colegas mais sofisticados hão de torcer o nariz diante destes exemplos (nenhum destes três é considerado um “grande escritor”), portanto deixem-me recorrer a outros: Dostoiévski, Balzac. Estes, se minha bolsa-de-valores não está desatualizada, são considerados escritores de primeira linha, mas não pela sua arquitetura, e sim pelas suas gárgulas.
Eu diria que o gênero “romance” é por natureza mais propício às gárgulas do que ao planejamento arquitetônico. O romance, pelas suas dimensões, parece ser uma obra de engenharia; mas a sua tendência mais natural é para ser uma obra múltipla de escultura.
Pego como exemplos o Romance da Pedra do Reino de Ariano Suassuna e Grande Sertão: Veredas de Guimarães Rosa. São dois livros imensos, desconjuntados, excessivos.
Em matéria de arquitetura dramática, não têm a elegância de um Niemeyer ou de um Frank Lloyd Wright. Parecem-se mais com a Catedral de Sevilha, uma geringonça de blocos superpostos por cristãos e muçulmanos ao longo de séculos. Uma estrutura produzida por simples acreção, sem planejamento, sem que em momento algum de sua construção alguém tivesse em mente a totalidade do conjunto, ou uma intenção final.
Grande Sertão é o terror de muitos leitores que recuam diante daquele linguajar bárbaro, e se perdem naquele labirinto de palavras que parece não estar levando a lugar algum. Por sorte, apesar do começo do livro ser totalmente aleatório, por volta da página 150 a narrativa pega um rumo e daí em diante flui toda na mesma direção.
O livro de Ariano também é cheio de idas e vindas, flash-backs longuíssimos, incontáveis episódios interpolados. É quase impossível ler o livro de A a Z e ter uma idéia clara da história que foi contada; é preciso voltar atrás, botar as peças na ordem, esquecer as numerosas e intermináveis citações de livros alheios...
Mas no meio disso tudo, quantos episódios brilhantes de humor, de visionarismo sertanejo, de erotismo sacrílego e tentador, de sátira política e literária. Com uma gárgula dessas por capítulo, quem liga para a forma da catedral?
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