(René Magritte)
Algum tempo atrás comentei aqui (“O inimigo oculto”, 18 de julho) o recurso narrativo de se manter fora do texto o seu personagem principal, que existe de forma indireta, visto pelos demais personagens. Dei como modelo algumas canções de Chico Buarque, mas a dramaturgia em geral é farta em exemplos.
Minha irmã Clotilde Tavares acaba de estrear uma peça, que escreveu e dirigiu: Alguém lá fora, a história de três mulheres que moram num lugar afastado. Uma noite, um homem chega lá e é hospedado pelas três, fica dormindo num quarto fora da casa; e a presença desse estranho começa a alterar o comportamento delas. O detalhe é que o personagem masculino nunca é visto, não há um ator para interpretá-lo. Ele existe apenas através das reações das mulheres, que vão “lá fora”, conversam com ele, voltam, etc.
O que me lembra um pouco Rebecca, o romance de Daphne du Maurier filmado por Hitchcock. Quando o filme começa, Rebecca já morreu, e o que acompanhamos é o casamento de seu viúvo, Max de Winter, com uma jovem que aos poucos começa a perceber a presença opressiva dessa ex-esposa que exercia um domínio inexplicável sobre todo mundo.
Morta e invisível, Rebecca é o “motor” de tudo que acontece no filme, e um dos grandes personagens de todos os tempos, mesmo sem aparecer sequer numa cena de “flash-back”. Uma colcha-de-retalhos de depoimentos e memórias de pessoas que a odiaram ou que eram apaixonadas por ela.
Há casos de personagens menos centrais mas igualmente interessantes, como o espião Kaplan em Intriga Internacional de Hitchcock, que no final ficamos sabendo tratar-se de um personagem fictício, cujas bagagens são enviadas de avião e remetidas para hotéis sem que ninguém jamais o veja. Ele serve somente para despistar os espiões inimigos.
E há os personagens parcialmente visíveis (há um ator que os interpreta), mas ainda assim misteriosos, como o motorista do caminhão que em Encurralado, filme de estréia de Spielberg, persegue um pobre coitado ao longo de uma rodovia.
Em todos estes casos, o personagem “em si” não aparece, e tudo que sabemos dele é a reação que as pessoas têm à simples menção de seu nome, ou as histórias que contam ao seu respeito.
Criar um personagem assim é um bom desafio pra um autor, porque ele pode explorar ao máximo as nossas diferentes maneiras de reagir a uma mesma coisa.
Em seu conto “A aproximação a Almotásim”, Jorge Luís Borges conta a história de um estudante que ouve falar num tal de Almotásim, indivíduo de muitas virtudes, e dedica sua vida a tentar encontrá-lo, sem o conseguir. É a história, diz Borges, da “busca insaciável de uma alma através dos tênues reflexos que esta deixou em outras”.
Rastrear esses reflexos, dar-lhes substância narrativa, jogar com as contradições e os paradoxos que irão se formando entre eles, é um teste para o bom narrador, e um prazer para o leitor que gosta de saborear sutilezas.
Gostaria de encontrar mais exemplos em nossa literatura (a brasileira), de artifícios utilizados como esses, "personagens imaginários". Não me parecem comuns...
ResponderExcluirNoturno Indiano, do Tabucchi, leva esse recurso a um extremo assombroso.
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