sexta-feira, 8 de agosto de 2008

0499) O sol e a chuva (24.10.2004)



Alguns dias atrás falei aqui sobre a luz e a treva, e a injustiça de se atribuírem valores absolutos a cada uma (a luz como algo necessariamente bom, a treva uma coisa má). 

Outra parelha dessas que sempre me chamou a atenção foi o sol e a chuva. Qualquer nordestino, por exemplo, sabe que o sol é um mal necessário. Sem ele seria impossível a vida na terra, mas o problema é que com ele a situação não melhora tanto assim. 

Ouçam o Cancioneiro Nordestino de A a Z, meus camaradinhas, para vocês verem como o sol nos provoca medo, ou um respeito misturado com repulsa, uma mágoa que não tem perdão que cure. 

“No Nordeste imenso, quando o sol calcina a terra...” 

“Meu Deus, eu pedi para o sol se esconder um tiquinho...” 

E a chuva? Ave Maria! Chuva é festa, é alegria, é banho de barreiro, é menino sapateando em poça de lama, é o véio mais a véia tomando banho na bica... Chuva traz as coisas boas da vida.

Aí a gente dá um pulo pro Rio de Janeiro, e tudo muda de figura. Chuva aqui é palavrão, e o sol é a panacéia universal, o remédio que cura todos os males. A indagação mais ansiosamente murmurada pelos cariocas, dia após dia, ano após ano, é: “Será que vai dar praia?...” – enquanto os olhos súplices se voltam para o céu, buscando o sol com a mesma ansiedade com que os sertanejos buscam as nuvens grossas e cinzentas que podem salvar sua vida. 

E dêem uma olhada no Cancioneiro Carioca, desde o samba até o rock circo-voador e a bossa-nova. “Fim da tempestade, o sol nascerá...” “Me dê a mão, vamos sair pra ver o sol...” Que sertanejo diria à sua amada uma heresia destas proporções?

Mas isto não é tudo. Bote o passaporte no bolso e vamos dar um pulo maior, até a Inglaterra. 

O Cancioneiro Beatle também está cheio de referências ao sol e à chuva. 

“Pois amanhã pode chover, então... eu seguirei o sol.” 

“Aí vem o sol, e eu digo que está tudo bem...” 

“Eu preciso rir, e quando o sol aparece eu tenho um motivo para rir... Bom dia, raio de sol...” 

Meu amigo!... Que sertanejo no mundo pronunciaria semelhante absurdo?!

Na verdade, isto mostra que em termos de simbolismo poético nunca se tem uma solução única, ou mesmo uma solução sim-ou-não. As soluções poéticas são múltiplas, e mesmo quando coincidem, pode ser por motivos diferentes. 

Tanto cariocas quanto londrinos amam o sol e abominam a chuva – mas os dois vivem em cidades de clima totalmente oposto. Em Londres, o normal é o dia nublado e chuvoso, e o dia de sol é uma festa da Natureza. No Rio, o sol é um direito civil, um piso mínimo de liberdade e alegria a que todos têm direito, e um dia sem ele é como um dia passado na cadeia.

Não há soluções poéticas óbvias, ou, pelo menos, sempre é possível fugir ao óbvio, desviar-se do clichê, recusar a enganadora facilidade do que já foi dito e repetido. Razão, como sempre, tinha John Lennon, quando dizia: 

“Sento num jardim inglês, esperando o sol, e se o sol não vier eu me bronzearei na chuva inglesa.”






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