quinta-feira, 17 de julho de 2008

0447) Yossel Rakover e Deus (25.8.2004)




“Nas ruínas do gueto de Varsóvia encontrou-se, enterrada sob montanhas de pedras calcinadas e restos humanos, uma pequena garrafa. Ela guardava o seguinte testamento, escrito por um judeu chamado Yossel Rakover algumas horas antes do aniquilamento do gueto.” 

Assim começa um dos mais inquietantes documentos literários judeus, Yossel Rakover dirige-se a Deus, publicado em setembro de 1946 no Ídiche Zeitung, diário israelita de Buenos Aires. 

Seu autor, Zvi Kolitz, nasceu em 1919 num vilarejo da Lituânia, de onde fugiu às perseguições anti-semitas em 1937, com a mãe e os irmãos. Vagueou pela Europa durante a Guerra, e depois de 1945 foi para a Argentina, onde participou do movimento pela criação do Estado de Israel, e escreveu este conto.

O texto (SP, Ed. Perspectiva, 2003) é atribuído a um judeu fictício durante a II Guerra: 

“Escrevo estas linhas no gueto de Varsóvia em chamas. A casa em que me encontro é uma das últimas que ainda não queima. Há algumas horas estamos sob um contínuo bombardeio de artilharia...” 

Sabendo que a morte é iminente, Rakover dirige-se a Deus, e pede-lhe contas sobre que está acontecendo. É um documento religioso impressionante, apesar de ser uma história fictícia. Rakover lembra os tormentos sofridos por Jó, no Antigo Testamento, mas afirma: 

“Mas não lhe peço, como Job, para que me esclareça sobre os meus pecados, para dessa forma eu saber por que mereci isso. Porque maiores e melhores do que eu estão firmemente convencidos de que não se trata mais, atualmente, de castigo por faltas cometidas. Aconteceu alguma coisa absolutamente peculiar e isso chama-se ´Hastores Ponim´: Deus velou a Sua face.”

Por que motivo Deus permite que isto aconteça? É uma das perguntas mais antigas do mundo, mas no contexto dos massacres da Europa nazista ela ganhou um novo significado. Rakover não pede piedade, não pede um milagre, não pede pela própria vida. Afirma seu orgulho em pertencer a um povo humilhado e perseguido, e lembra as palavras de um rabino: “Não existe nada mais inteiro do que um coração despedaçado”. 

Ele admite não entender a vontade de Deus, mas afirma: 

“Creio no Deus de Israel, mesmo que ele tenha feito de tudo para que eu não acredite Nele. Creio em Suas leis, mesmo que eu não possa encontrar justificativa para os Seus atos. Eu O amo. Mas amo ainda mais a Sua Torá. Mesmo que eu tenha estado iludido com Ele, continuarei a observar a Sua lei.”

Crer que a lei de Deus está acima de Deus é, para mim, um salto filosófico de primeira grandeza. É crer que existe uma Ordem superior no universo, e que, se Deus às vezes é insondável e ininteligível, essa Ordem não o é. E é só por acreditar nela que Rakover, em seu desespero final, recusa-se a afastar-se de Deus: 

“Isto não te valerá de nada! Fizeste de tudo para fazer-me duvidar de Ti, para que eu não creia em Ti. Mas morro exatamente como vivi, com uma fé inquebrantável.”








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