Um problema aqui no “Sul” é explicar o Nordeste a quem dele só conhece a caricatura. Muita gente pensa que eu nasci numa paisagem de cactos, criei-me num casebre de barro rodeado de caveiras de boi, e vim morar no Rio afugentado pela seca.
Não adianta repetir que fui um garoto urbano, criado numa cidade importante (a Campina em que cresci era o décimo-terceiro município brasileiro; hoje não deve ser o centésimo), e que minha infância girou em torno de cinema, rádio, gibi e futebol.
Uma vez, dando uma entrevista a uma moça simpática que nascera em Ipanema e desconhecia até mesmo o Grajaú, tive que exagerar um pouco e explicar-lhe que viera a conhecer o sertão através dos filmes de Glauber Rocha.
“Mas você não é do interior da Paraíba?”, insistia ela. “Sim, mas não sou sertanejo. Minha cidade é uma cidade fria, fica numa serra, no inverno é frio pra caramba, tem uma névoa que parece Londres...” E ela ria, incrédula.
Talvez por isto mesmo eu guarde lembranças tão intensas das minhas poucas experiências de passar férias em fazenda.
Levar ao curral o caneco de alumínio com açúcar, para enchê-lo de leite espumante.
Tirar o leite do peito da vaca (sim, já tirei).
Montar a cavalo – eu teria uns cinco anos, e o cavalo me pareceu maior que o de Tróia.
Alvejar passarinhos com balieira – nunca acertei.
Tomar banho de rio e de açude, colher algodão, andar em carro de boi...
Fiz tudo isto, nos arredores de Coxixola-PB (onde minha mãe nasceu) ou de Angelim-PE (onde meu avô materno tinha umas terras). São recordações vívidas, que não foram substituídas por experiências na idade adulta. Penso às vezes no quanto são importantes as experiências a que submetemos nossos filhos, na nossa responsabilidade ao escolher as coisas que recordarão na velhice.
E quando penso em velhice começo a imaginar que quando eu chegar lá, um dia, terei virado sertanejo.
Quando eu estiver com 75 anos, estarei cercado de jovens para quem esse universo que vi de passagem será algo tão remoto quanto o Egito que ergueu as pirâmides. Jovens que nunca terão caçado passarinho ou tomado banho de rio. Que terão sido criados largando o videogame para brincar no playground. Que saberão o que é um robô mas nunca terão visto uma queima-de-judas. Que aprenderão o inglês com desassombro e presteza, mas ficarão de língua travada diante da fala de um agricultor ou de um vaqueiro.
Quando meu filho mais novo tinha quatro anos levei-o ao Zoológico, imaginando sua fascinação quando visse o tigre ou a girafa. Pois ele não queria sair de junto da cerca da vaca, apontando: “A vaca, pai! A vaca!”
Sim; já percebi que aos 75 anos de idade serei sertanejo, contarei aos netos o que é tibungar em barreiro, subir em pé de goiaba, queimar-se em leite de aveloz, pisar sem querer em marimbondo, raspar o queimado no caldeirão da canjica, correr atrás de tanajura...
Já me considerei um dos primeiros urbanóides cibernéticos; o Futuro me transformará num dos últimos sertanejos.
Eu não conheço o sertão paraibano, devo dizer. Nunca fui muito longe nesse sentido. Mas tive uma boa parte dessa impressão da sua infância no sítio da minha tia, que fica a cerca de 20km de Campina, nas proximidades do cariri. Não andei de cavalo, mas cheguei bem perto do aveloz, hehehe.
ResponderExcluirMas chocante sua perspectiva de passar de um urbanóide cibernético para um dos últimos sertanejos! =O
A propósito, de acordo com a Wikipédia, Campina é o 56º município brasileiro em população.
Essa visão estereotipada é muito forte ainda. A própria literatura, o cinema insiste muitas vezes nesta visão rural e miserável do Nordeste. Um série de discursos imagéticos diariamente reproduzem esta tendência seja na mídia e na arte de maneira geral. È necessário a reprodução de resistências neste sentido. Precisamos expor o lado urbano de nossa região, trazermos um outro Nordeste, que existe e sempre existiu, mas que infelizmente ainda não foi mostrado de maneira significativa.
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