segunda-feira, 31 de março de 2008

0339) O jogo da traição (21.4.2004)




(Cães de Aluguel, de Quentin Tarantino)

Ontem falei sobre “O dilema da Tosca”, um problema de lógica usado por Anatol Rapoport, inspirado na ópera de Puccini. 

Nela, a heroína da ópera negocia com o chefe de polícia, Scarpia, a libertação do seu amado, Cavaradossi. O policial diz que só o libertará se Tosca se entregar a ele. Firmam o acordo, mas nenhum dos dois pode ter certeza de que o outro cumprirá a palavra. Neste caso, o que será melhor: manter a palavra dada, ou negar-se a cumprir sua parte e esperar que o outro cumpra a sua?

Uma situação parecida aparece com frequência nos casos de sequestro. O sequestrador avisa: “Deixe 1 milhão de reais em tal canto, que eu solto o garoto.” Se ambos cumprirem o combinado, o resultado final será parcialmente satisfatório para todo mundo: o sequestrado volta para casa (mesmo pagando caro por isto), e os bandidos fogem com o dinheiro (mesmo devolvendo seu elemento de barganha). 

Mas como a família pode ter certeza de que os bandidos não vão pegar a grana e matar o sequestrado, para evitar um futuro reconhecimento? E o sequestrador também fica com a pulga atrás da orelha. Como pode ter certeza de que a família não vai depositar no local combinado um saco de dinheiro falso, ou dinheiro “marcado” pela polícia? 

Sempre pode se dar o caso de um dos dois lados ceder à tentação de obter uma “vitória completa”. Vitórias completas desta natureza só ocorrem quando traímos e não somos traídos.

A tentação de trair o oponente, diz Rapoport, é grande porque “quando ambos se traem mutuamente, os dois perdem, mas não tanto quanto perderiam se ele ou ela tivesse feito o papel de tolo”, ou seja, tivesse cumprido a palavra enquanto o adversário lhe passava a perna. 

Situações deste tipo são frequentes na política, e nos últimos anos o exemplo que me vem à mente é o do sofrido processo de desarmamento do IRA, o Exército Republicano Irlandês. Nem o IRA confia totalmente que o governo da Grã-Bretanha vá cumprir as promessas feitas, nem o governo acredita totalmente que o IRA vá de fato entregar todo o armamento de que dispõe, e que não é pequeno. 

Em ambos os casos, a tentação de trapacear é grande.

Em outros casos mais graves, o que existe não é sequer a tentação de trapacear: é uma intenção deliberada de extrair o máximo de vantagens, de esmagar politicamente o adversário. É o caso do conflito entre Israel e palestinos. Para mim, que vejo tudo à distância, parece impossível que se chegue a uma solução diplomática entre dois grupos liderados por indivíduos (Ariel Sharon e Arafat) com uma longa história de militarismo, terrorismo e declarações de ódio. 

Enquanto as lideranças forem indivíduos com este tipo de passado e este tipo de retórica, nenhum acordo será mantido, nenhuma proposta de paz terá continuidade. E enquanto o impasse se arrasta, aumenta o número dos que perderam amigos e parentes e começam a achar que a vingança é melhor do que a convivência pacífica.








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