Dias atrás vi numa livraria um ensaio sobre a obra de Ítalo Calvino, um dos meus escritores preferidos. Dei uma folheada; o índice prometia, o preço não estava fora do alcance (bastava ficar na ponta dos pés), mas antes de levar até o caixa abri lá pelo meio para espiar um começo de capítulo – e quase caí para trás. Não decorei, nem posso copiar porque não comprei o livro. Mas o capítulo começava mais ou menos nesse tom, um tom que conheço muitíssimo:
“Coloca-se-nos, portanto, a imposição de traçar o viés ideológico, e de reunir um ferramental teórico capaz de delimitar os diversos eixos de actância presentes na Obra, sem perder de vista as condicionantes psicossociais fundadoras do ato linguístico do Autor, ao mesmo tempo Fulcro e Eixo, ponto para onde convergem e de onde se irradiam as reelaborações linguísticas do material socialmente herdado, cadinho de transformações sígnicas, de sublimações arquetípicas, pois que no transcurso entre a página e a mente do leitor, o Texto desvenda-se em sua natureza última de Fluxo coalescente, de orquestração polissêmica do Indizível.”
E pá e bola. Os amigos acadêmicos me desculpem, mas... isso pega? Parece que sim. De vez em quando eu pego um volume de ensaios, uma revista universitária, ou mesmo uma obra literária qualquer prefaciada por um professor. Começo a ler o texto mas sofro uma travada nos neurônios e o livro escapole da mão, porque até a coordenação motora fica comprometida. Essa algaravia acadêmica, inchada de modismos e de jargão técnico, é o pior vírus no mundo da teoria literária.
Existem saites na Internet dedicados a criticar esses exemplos de teratologia estilística, ou monstruosidades verbais. O “Bad Writing Contest” (http://www.cybereditions.com/aldaily/bwc.htm) premia todos os anos os mais intragáveis textos de prosa acadêmica. Não transcrevo um exemplo aqui, em primeiro lugar, porque são todos imensos – uma das regras do academês é justamente usar parágrafos de dimensões proustianas, com vocabulário de bula-de-remédio. E também porque teria que traduzi-los, e tenho medo de, depois dessa empreitada, nunca mais poder falar normalmente.
A teoria literária não precisa disto. Os melhores teóricos acadêmicos de literatura usam eventualmente uma linguagem complexa, mas também são capazes de se fazer entender em língua de gente, como demonstram os textos de Roland Barthes e de Umberto Eco. Críticos como Edmund Wilson (O Castelo de Axel) e Erich Auerbach (Mimesis) nos ajudam a ler as obras, lêem as obras junto conosco, comentando, guiando, sugerindo. O mal que as escolas de Letras fazem por aí é empurrar o jargão goela abaixo dos alunos, e impedir que se expressem de outra forma. É como o perna-de-pau do circo que depois de um tempo só consegue andar nas pernas-de-pau, sem elas não acerta a dar um passo sequer. Se a língua acadêmica é um Novo Latim, está na hora de diluí-lo em português, em língua de gente.
Se leres algum trabalho na área de Análise do Discurso então... terás um infarto. Deus te livre!
ResponderExcluirMe entristece a situação da área de Humanas no Brasil, especialmente em Letras.
:/
É por essas e outras que a intelectualidade intelectualóide acaba afastando muitos que poderiam contribuir apenas com seu saber. Teórico sim, por que não, mas pra que o indecifrável?
ResponderExcluirBruno