quarta-feira, 19 de março de 2008

0286) Viva a língua brasileira (19.2.2004)




Tem um monte de gente aí fazendo campanha contra a invasão de palavras inglesas em nossa língua. E logo eu, que sou tão americanizado, sou a favor. É ridículo a gente ver nas vitrines das lojas um letreiro com “Sale” em vez de “Liquidação”. (Querem o quê? Poupar tinta?) Ou então “Open” em vez de “Aberto”. Por outro lado, para algumas coisas a desgraça já está feita, e não acredito que alguém deixe de dizer “milkshake” para dizer “leite batido”.

O que me preocupa, contudo, mais do que isto, é uma invasão muito mais solerte, para a qual chamo sua atenção, leitor, se você é escritor, leitor, professor, aluno, jornalista, ou qualquer outra profissão que dependa da língua portuguesa. Estou falando do português mal traduzido. Convivo com isto o dia inteiro, porque é a regra em duas áreas a que me dedico: o rock-and-roll e a literatura de ficção científica. São dois universos anglofalantes, e é incalculável a quantidade de texto traduzido amadoristicamente, onde, por falta de conhecimento da língua portuguesa, as pessoas produzem verdadeiros monstrengos estilísticos.

Isso tem um efeito curioso. Muitos jovens escritores de ficção científica no Brasil só lêem livros em inglês ou livros americanos traduzidos para o português. Não lêem livros escritos em português! Não peço nem que leiam Eça ou Machado, mas que lessem, sei lá, Luís Fernando Veríssimo ou Millôr Fernandes ou Monteiro Lobato ou Fernando Sabino ou tantos outros que escrevem de uma maneira simples, criativa, direta, e cheia de substância brasileira.

Volta e meia vejo num livro uma frase tipo: “Ela tinha um belo, esguio, bronzeado corpo.” O que é isto? Em inglês o substantivo vem muitas vezes no fim de uma enumeração de adjetivos (assim como em alemão o verbo geralmente vem no fim de frases bem longas). A frase original deve ser algo como: “She had a beautiful, slender, sun-tanned body”. Ou seja: “Ela tinha um belo corpo, esguio, queimado pelo sol”.

Na TV, vemos o tempo inteiro alguém dizer, em vez de “Eu estou fazendo o melhor que posso, ou o melhor possível”, esta aberração: “Eu estou fazendo o meu melhor.” (“I am doing my best”). A tradução literal é o caminho mais curto para o absurdo, o idiota, o ilegível. Hoje mesmo li numa revista brasileira de quadrinhos: “A publicação deste livro só foi possível com a permissão do estado do autor”. A expressão original deve ser algo como “...with the permission of the author´s estate”, que significa “com a permissão dos herdeiros do autor, ou dos seus representantes, seus executores legais após o falecimento.”

Além disso, cada língua tem sua organização sintática, seu ritmo, sua necessidade de pontuação. O primeiro erro do tradutor inexperiente é ser fiel demais: por exemplo, colocando as palavras na mesma ordem em que aparecem no original, mantendo as mesmas vírgulas e mesmos travessões do original... Isto é mais sutil e mais perigoso do que um milkshake.

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