Não me considero um indivíduo preconceituoso, embora o seja. Quando não tem mais jeito, livro-me do assunto resmungando: “Quem quiser que goste, mas eu detesto.” Detestei, sem ver, A vida é bela de Roberto Benigni, aquele que roubou o Oscar de Central do Brasil. Depois desse atentado ao nosso orgulho patriótico, a crítica brasileira caiu de pau no filme, e eu também. Onde já se viu, usar o Holocausto dos judeus para fazer gracinha? Oswald de Andrade dizia nestes casos: “Não vi e não gostei”, mas muita gente aqui não viu com medo de gostar. Acabei vendo agora. Pois não é que o filme é bom?
A vida é bela é um retrato do fascismo italiano do ponto de vista de uma cidadezinha, como faz Fellini em Amarcord. Outro lado interessante dele é a importância da fantasia como uma espécie de leitura-e-escritura do mundo. Os personagens de A vida é bela vivem numa espécie de realismo mágico próprio. Guido, o personagem principal, vive interpretando e “coreografando” pequenas cenas do cotidiano para dar-lhes um aspecto mágico. Um roteiro muito simples e hábil faz com que ele se aproveite de inúmeras coincidências e falsos acasos para dar a impressão de que pode fazer, magicamente, coisas acontecerem. Na verdade, ele apenas antevê um pequeno fato e rapidamente faz uma profecia. Com isto, acaba conquistando Dora, que não é maluca e sabe muito bem que aquilo não é magia – mas é o charme da ficção dele que a diverte e acaba por seduzi-la.
O médico nazista que faz um desafio de charadas com Guido é o reverso disso. A certa altura Guido percebe que para ele as charadas são mais importantes do que tudo. Sem conseguir aderir ao delírio coletivo do nazismo, ele se refugia num delírio pessoal, para proteger a si próprio como Guido protege o filho. Todos vivem num mundo de fantasia: a guerra é uma fantasia de grandeza dos nazi-fascistas, as charadas são uma fantasia de fuga do médico, e Guido inventa, para proteger o filho, uma complicada fantasia de que aquela ida deles para o campo de concentração é uma espécie de “reality show” do tipo No Limite, onde eles têm que aguentar algumas privações para que possam marcar pontos e ganhar o grande prêmio.
O garotinho passa incólume por uma guerra e uma internação num campo, pensando o tempo inteiro que aquilo não passa de um jogo (o que lembra histórias de ficção científica como O jogo do exterminador, de Orson Scott Card). Muitas das críticas feitas ao filme queixam-se de que tudo é muito favorável, as escapadas são facílimas, os carrascos não são realistas. Ora, o filme tem a proposta muita clara de ser uma fábula, uma história que jamais poderia ocorrer daquela forma no mundo que conhecemos, mas que precisa ocorrer daquela forma na tela para que percebamos aspectos do mundo “de cá” que normalmente não percebemos. Roberto Benigni trabalha na linha de Chaplin e de Fellini. Só não precisava era ter feito aquela palhaçada na noite do Oscar.
Ok, eu posso até ser meio "viúva de Central do Brasil", mas não acho, nem em 1999 nem hoje, quase dez anos depois, que "A Vida É Bela" seja melhor que o filme de Walter Salles, apesar de ter seus bons momentos. Talvez seja só meu mau humor, porque acho um filme desrespeitoso com a história (ao menos a oficial) e fico pensando no que disse Adorno; se "depois de Auschwitz, escrever um poema é bárbaro", imagine fazer piadas...
ResponderExcluirMas ainda darei uma outra chance ao filme, mais tolerante.
Ah, o blog é ótimo; eu já o leio sempre no JP, e adorei a idéia de colocar também aqui os textos (salvou os pobres jornais da tesoura assassina).
:)
Eu também não acho que o filme é melhor do que o de Salles. Acho que ambos são bons. E também não acho que ele faz piada com o nazismo. É um dos filmes mais tristes que vi nos últimos anos. É uma história trágica, em que um personagem faz trejeitos cômicos, etc., apenas para evitar que o filho sofra.
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