segunda-feira, 17 de março de 2008

0267) A voz do morto (28.1.2004)




Em seu romance Fundação (na verdade uma série encadeada de narrativas curtas, publicadas em revistas entre 1942 e 1950) o escritor Isaac Asimov criou um dos seus personagens mais fascinantes, Hari Seldon. Seldon é um cientista que inventou uma nova ciência, a Psico-História, uma mistura de Sociologia, Estatística e Futurologia. Com a Psico-História, ele é capaz de prever todas as turbulências que irão sacudir o império da raça humana, que a essa altura do futuro se espalha por toda a Galáxia. Perto de morrer, Seldon grava uma porção de vídeos, deixando com seus descendentes instruções para que eles sejam exibidos dentro de tantas ou tantas décadas. Quando isto acontece, o cientista aparece, descreve exatamente como está a situação política da Galáxia e indica os caminhos que devem ser seguidos. Ele já tinha previsto tudo, desde antes, aplicando as leis matemáticas da Psico-História.

Essas cenas me vieram à mente agora, depois dos atentados de 11 de setembro, com o aparecimento periódico de vídeos de Osama bin Laden, onde ele faz comentários vagos sobre a política mundial e exorta os muçulmanos em geral a continuarem combatendo os Estados Unidos. Imagino que esses vídeos sejam aguardados pelos seguidores da Al-Qaeda com a mesma expectativa com que os habitantes de Trantor, a cidade-planeta de Asimov, aguardavam os pronunciamentos de Hari Seldon, feitos na Câmara do Tempo. São aquele apertar de parafusos, aquelas correções de rumo que os profetas fazem de vez em quando,

Bin Laden nem precisa provar que está vivo. Um líder guerrilheiro ocidental talvez fizesse questão de datar seus vídeos – mostrando um jornal do dia (como fazem os sequestradores quando fotografam os reféns) ou referindo-se a fatos específicos. Parece que a estratégia de Bin Laden é nunca dar certeza. Por um lado, a fidelidade de seus seguidores não depende de ele estar vivo ou não; por outro lado, se provar que está vivo ele talvez faça recrudescerem as buscas.

O mais interessante deste processo, no entanto, é que os profetas tornam-se tanto mais eficazes quanto mais inespecíficos. Se Nostradamus tivesse dito: “O presidente Jimmy Carter será assassinado no poder...” e isso não ocorresse, ele ficaria desmoralizado. Mas não. As suas Centúrias são todas naquele tom de “A grande sombra cinza se erguerá do Oriente, e fará tremer o herdeiro dos falcões; o ouro será jogado ao chão, e o grande Rio deixará de correr durante a noite.” Aí pronto: como nada específico está sendo dito, cada um analisa a xaropada do jeito que bem entende, e pode extrair do texto acima tanto uma análise da Guerra de Canudos quanto uma resenha negativa do filme “O senhor dos anéis”. Hari Seldon, personagem de ficção científica, fazia intervenções claras, precisas, indubitáveis. Profetas como Nostradamus e espertalhões como Bin Laden recorrem a um blá-blá-blá simbólico que pode ser lido de inúmeras maneiras, sempre dando a impressão de que acertaram na mosca.

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