sábado, 15 de março de 2008

0254) O hiper-soneto de Queneau (13.1.2004)




Raymond Queneau é um dos personagens mais divertidos, mais misteriosos e mais fascinantes da literatura francesa. Fêz de tudo um pouco. Foi matemático amador, e também propôs uma nova ortografia para a língua francesa. Foi coordenador da respeitável Encyclopédie de la Pléiade, e era leitor inveterado de romances policiais e de ficção científica. Escreveu um poema épico-científico sobre a criação do mundo (Petite Cosmogonie Portative) e foi letrista da canção francesa de maior sucesso nos anos 1950, “Si tu t´imagines” (gravada por Juliette Gréco). Seu livros mais conhecidos, ambos traduzidos no Brasil, são Zazie no metrô, aventuras de uma garota do interior através de Paris, e Exercícios de estilo, uma pequena anedota recontada de 99 modos diferentes, que o diretor Gabriel Vilela adaptou para o teatro com o título Você vai ver o que você vai ver.

Quem quiser saber mais sobre Queneau pode começar pela página de minha autoria no saite The Modern Word (http://www.themodernword.com/scriptorium/queneau.html). O que nos interessa, no momento, é o poema experimental que ele intitulou “Cem mil bilhões de poemas”. Na verdade, trata-se de um poema combinatório: são dez sonetos (em formato tradicional, com esquema de rimas ABAB-ABAB-CCD-EED), escritos de tal forma que o final de cada primeira linha pode se encadear no começo de cada segunda linha, e assim por diante. Como o soneto tem 14 linhas, o total de combinações possíveis é 10 elevado à 14a. potência, o que dá os tais cem mil bilhões.

A edição original do hiper-soneto era caríssima: cada verso de cada soneto era impresso numa tira de papel separada, as quais eram presas à encadernação de tal forma que podiam ser folheadas independentemente, para a frente e para trás. Cada mudança destas produzia a leitura vertical de um soneto diferente de todos os outros. A publicação desta curiosidade literária foi em 1961. Computadores eram algo que só interessava aos criptógrafos do Serviço Secreto, aos militares e à nascente tecnologia espacial. Hoje, contudo, o poema de Queneau se multiplica pela Internet em saites onde basta clicar para que uma combinação, entre os bilhões possíveis, ocorra numa fração de segundo. O soneto resultante precisa ser copiado. Jamais (como no Livro de Areia de Borges) conseguiremos vê-lo novamente.

Quem quiser dê um pulo no saite de Magnus Bodin (http://x42.com/active/queneau.html), que nos dá inclusive a opção de ler os sonetos em francês, inglês ou sueco. Desde 1961 o hiper-soneto de Queneau nos tem feito refletir. Ele mistura criação e acaso. Estimula nossa capacidade de projetar sentido em estruturas produzidas aleatoriamente. Mostra como, para escrever o mais longo poema já produzido pela espécie humana, nem é preciso escrevê-lo todo: basta criar uma matéria-prima e uma lei para multiplicá-la. O hiper-soneto é o milagre dos pães e dos peixes, no limiar entre os universos da Poesia e da Matemática.

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